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A barreira cutânea na dermatite atópica canina

Publicado 23/07/2024

Escrito por Yun-Hsia Hsiao

Disponível em Français , Deutsch , Italiano , Español e English

Os conhecimentos sobre a dermatite atópica canina seguem avançando. O presente artigo aborda especificamente o papel da barreira cutânea e como a sua disfunção pode contribuir para essa doença.

apresentação clínica da dermatite atópica canina

Pontos-chave

Há algumas evidências de que a barreira cutânea defeituosa é um fator-chave no desenvolvimento da dermatite atópica.


A microbiota da pele é outro aspecto importante para determinar a probabilidade de que um cão desenvolva dermatite atópica.


Diversos fatores, incluindo infecções secundárias por bactérias e fungos, alergias à picada de pulgas e reações adversas a alimentos, podem agravar a dermatite atópica.


Para controlar a dermatite atópica a longo prazo, é essencial adotar uma abordagem terapêutica multimodal, incluindo o foco na manutenção de uma barreira cutânea saudável.


Introdução 

Além de ser uma estrutura incrível, a pele é o maior órgão do corpo. Ela atua como uma barreira vital entre os órgãos internos e o ambiente externo, protegendo o animal de substâncias estranhas e contribuindo para a saúde geral do organismo. A epiderme da pele evoluiu a ponto de se tornar uma estrutura dinâmica com propriedades homeostáticas, capazes de lidar com mudanças nas condições externas. Este artigo revisa o papel desempenhado pela barreira cutânea na dermatite atópica em cães e aborda a melhor forma de otimizar a saúde deles.

Anatomia da epiderme

A epiderme é composta por várias camadas de corneócitos, a saber (de dentro para fora): o estrato basal, o estrato espinhoso, o estrato granuloso, e o estrato córneo. O corneócito é o produto final da queratinização epidérmica. Em cães, a renovação da epiderme leva cerca de 22 dias; as novas células que se originam da camada basal migram até a superfície para substituir as células mortas da camada externa. As células se mantêm unidas por uma matriz lipídica, composta por colesterol, ácidos graxos livres e ceramidas, os quais contribuem para a formação de membranas lamelares extracelulares ricas em lipídios. Uma analogia comumente utilizada para descrever a barreira cutânea é a “teoria da parede de tijolos”, segundo a qual o estrato córneo forma os “tijolos”, enquanto a matriz intercelular rica em lipídios forma o “cimento” (Figura 1a) 1. A integridade do estrato córneo, particularmente da matriz lipídica, é importante para manter a função da barreira cutânea.

Além dos lipídios intercelulares, a camada mais externa do estrato córneo é revestida por uma variedade de moléculas hidrofóbicas, formando uma barreira protetora contra micróbios e alérgenos. A função da superfície cutânea e de seus lipídios foi amplamente investigada na dermatite atópica tanto de humanos como de cães, e acredita-se que as alterações na composição lipídica (ácidos graxos livres e ceramidas) na pele lesionada em caso de dermatite atópica e na conformação lamelar comprometam a integridade da barreira cutânea (Figura 1b) 2. Embora ainda não haja evidências definitivas da relação entre a disfunção da barreira cutânea e o desenvolvimento da dermatite atópica canina, alguns genes foram associados com o defeito na integridade da barreira epidérmica nesse tipo de dermatite, como aqueles responsáveis pela codificação das proteínas do exoesqueleto, placofilina 2 (PKP2) e filagrina (FLG) 3. Na medicina humana, a perda transepidérmica de água e a hidratação da pele são utilizadas para avaliar a função da barreira cutânea, a eficácia do tratamento em pacientes com atopia, e o uso de produtos cosméticos 4. Essas medidas são utilizadas com frequência nos ensaios clínicos devido à sua natureza não invasiva e sua comodidade; entretanto, essas técnicas ainda não foram padronizadas para uso em cães.

O conceito do modelo de “tijolo e cimento”

Figura 1a. O conceito do modelo de “tijolo e cimento” representa a disposição do estrato córneo, onde blocos de construção sólidos (as camadas cornificadas) se mantêm unidos por um cimento que preenche o espaço entre eles. A matriz lipídica da pele contém peptídeos conhecidos por suas propriedades antimicrobianas que mantêm o equilíbrio da flora normal e eliminam as bactérias patogênicas.
© Yun-Hsia Hsiao/redrawn by Sandrine Fontègne

Observe como a barreira lipídica defeituosa pode não ser capaz de impedir a penetração de microrganismos e alérgenos.

Figura 1b. O modelo de “tijolo e cimento” também serve para demonstrar o que acontece quando a barreira epidérmica está comprometida; isso leva à redução da distribuição de ceramidas, ao aumento da perda de água epidérmica e à diminuição da hidratação da pele. Observe como a barreira lipídica defeituosa pode não ser capaz de impedir a penetração de microrganismos e alérgenos.
© Yun-Hsia Hsiao/redrawn by Sandrine Fontègne

Microbiota cutânea 

A pele também é colonizada por uma ampla gama de microrganismos (bactérias, Malassezia, e fungos) conhecidos como microbiota. Nos últimos anos, graças aos avanços no sequenciamento de próxima geração (também conhecido como sequenciamento de nova geração), foi possível identificar uma grande variedade de residentes cutâneos, podendo haver diferenças significativas entre a microbiota das diferentes zonas corporais de um mesmo cão. Cabe destacar que a microbiota é suscetível a fatores como terapias tópicas, medicamentos sistêmicos (principalmente antimicrobianos) e até condições ambientais.

A exposição a uma microbiota de amplo espectro durante o início da vida contribui para a sua adaptação a microrganismos não nocivos 5, e reflete a assim-chamada “hipótese da higiene” da atopia humana. Essa hipótese foi proposta em 1989 para explicar a crescente prevalência de dermatite atópica observada em humanos; sugere-se que uma maior exposição a infecções na infância possa conferir uma proteção contra o desenvolvimento de condições atópicas na idade adulta. Os bebês tendem a nascer com uma resposta imune do tipo Th2 (células T-helper 2) e, durante o período pós-natal, essa resposta pode mudar rapidamente para o tipo Th1 graças à exposição microbiológica ou vir a ser potencializada pela exposição precoce a alérgenos. Sabe-se que as células Th2 estão envolvidas nas respostas alérgicas, enquanto a resposta Th1 é basicamente direcionada contra patógenos infecciosos. O ideal seria que ambas as respostas estivessem em equilíbrio; em bebês com menor probabilidade de desenvolver transtornos atópicos, observou-se um padrão Th1/Th2 equilibrado nas etapas posteriores da vida. Infelizmente, ainda não se realizaram estudos em cães com dermatite atópica que respaldem essa hipótese da higiene, mas as pesquisas indicam uma menor diversidade no microbioma da pele em cães atópicos, quando comparados com cães saudáveis 6. Além disso, quando cães com dermatite atópica apresentam crises agudas, há uma alteração temporária no equilíbrio da sua microbiota (disbiose) por um aumento substancial de Staphylococcus spp. Contudo, após a utilização de terapia antimicrobiana e durante a remissão das lesões, a perda transepidérmica de água é reduzida e a diversidade microbiana restaurada 7

Dermatite atópica canina

A dermatite atópica em cães é uma doença cutânea inflamatória pruriginosa e predominantemente causada por células T. A patogênese é multifatorial, envolvendo uma complexa interação de vários fatores, como regulação imunológica deficiente, anormalidades da barreira cutânea, predisposição genética, fatores ambientais, e disbiose (Figura 2). Sugere-se que os fatores ambientais desempenham um papel importante no desenvolvimento da dermatite atópica canina 3, uma vez que o estilo de vida de um cão, particularmente durante a fase de filhote, tem uma influência notável na maturação do sistema imunológico. Assim, se o cão crescer em um ambiente rural, acompanhado de um grande número de membros da ninhada, e entrar em contato com outros animais, o risco de desenvolver dermatite atópica canina no futuro pode ser reduzido. Além disso, também há uma indicação de que a infecção por Toxocara canis pode ter um efeito protetor contra a dermatite atópica canina induzida por Dermatophagoides farina (ácaros da poeira doméstica) 3.

fatores que interagem na patogênese da dermatite atópica canina

Figura 2. Existem vários fatores que interagem na patogênese da dermatite atópica canina. Apesar de ser considerada uma entidade patológica única, é imperativo empregar diversas estratégias terapêuticas para controlá-la de maneira eficaz.
© Yun-Hsia Hsiao/adapted from (23,24)/redrawn by Sandrine Fontègne

A principal característica clínica da dermatite atópica canina é o prurido – que, no caso, pode apresentar um padrão sazonal ou não sazonal. As lesões costumam ser localizadas em áreas como região periocular, ao redor do focinho, axilas, região inguinal, região perianal, e extremidades (Figura 3). Os cães com dermatite atópica podem apresentar problemas recorrentes, como otite externa e pododermatite, comumente associados a infecções bacterianas secundárias ou à proliferação de Malassezia. O diagnóstico de dermatite atópica canina se baseia na exclusão de outras condições pruriginosas da pele, sobretudo aquelas que mimetizam esse tipo de dermatite, como infestação por pulgas/hipersensibilidade à picada de pulgas, sarna, e reação adversa a alimentos. Uma vez realizado o tratamento profilático contra ectoparasitas, assim como as provas diagnósticas necessárias, incluindo a dieta de eliminação, podem-se utilizar os critérios de Favrot para estabelecer um diagnóstico clínico de dermatite atópica canina (Tabela 1) 8. Para a identificação de alérgenos relacionados com a dermatite atópica canina, há provas cutâneas e testes serológicos de IgE disponíveis; no entanto, deve-se ter consciência de que esses testes só serão necessários caso se considere a imunoterapia alérgeno-específica 9.

Tabela 1. Critérios de Favrot para a dermatite atópica canina. Se cinco (5) ou mais critérios forem atendidos, há pelo menos 80% de chance de que a dermatite atópica seja a causa do prurido.

  1. Aparecimento dos sinais antes dos 3 anos de idade
  2. Cão que vive principalmente em ambientes fechados (i. e., dentro de casa) 
  3. Prurido responsivo a glicocorticoides
  4. Prurido sem lesões (sine materia [sem matéria]) no início 
  5. Patas dianteiras afetadas
  6. Pavilhões auriculares acometidos 
  7. Margens das orelhas não afetadas
  8. Região dorsolombar não acometida
apresentação clínica da dermatite atópica canina; perda de pelos ao redor dos olhos

a

apresentação clínica da dermatite atópica canina; perda de pelos no focinho

b

apresentação clínica da dermatite atópica canina; perda de pelos na região abdominal ventral

c

Figura 3. Distribuição frequente das lesões e apresentação clínica da dermatite atópica canina; perda de pelos ao redor dos olhos (a), focinho (b), e região abdominal ventral (c).
© Yun-Hsia Hsiao

Fatores de complicação – piodermite

Staphylococcus pseudintermedius é um dos microrganismos comensais da pele do cão e um patógeno oportunista em casos de piodermite e otite externa, comumente associado a dermatite atópica canina subjacente e/ou reações adversas a alimentos 10. A pele saudável possui seus próprios mecanismos de defesa para prevenir o crescimento excessivo de bactérias, como peptídeos antimicrobianos, betadefensinas e catelicidinas, localizados nos espaços extracelulares do estrato córneo 11. A microbiota e a barreira cutânea trabalham juntas para manter a integridade da pele e defendê-la do ambiente externo. Os fatores que contribuem para a maior suscetibilidade de cães com dermatite atópica a infecções por Staphylococcus spp. não foram determinados com precisão. O diagnóstico de infecção cutânea bacteriana (foliculite superficial e piodermite) se baseia na apresentação clínica (pápulas, pústulas ou colaretes epidérmicos; Figura 4) e na presença de cocos intracelulares na citologia. As infecções bacterianas secundárias podem ser controladas de maneira eficaz mediante tratamentos tópicos. Manter a higiene da pele e da pelagem por meio de banhos com xampu pode ser particularmente benéfico para cães com dermatite atópica, pois ajuda a promover a integridade da barreira cutânea. O banho com xampu diminui a presença de alérgenos aderidos à superfície da pele ou à pelagem, evitando subsequentes irritações. Além disso, estudos in vitro sugerem que os xampus ou as espumas contendo antissépticos podem ter uma eficácia residual de até 14 dias 12, portanto, produtos com clorexidina, peróxido de benzoíla, lactato de etila, iodopovidona ou triclosana podem ser benéficos no tratamento de piodermite superficial 13. Esses produtos devem ser utilizados 2 a 3 vezes por semana, diminuindo a frequência para uma vez por semana quando as lesões desaparecem 13. Além disso, é recomendado o uso de mupirocina e ácido fusídico como agentes antimicrobianos tópicos em virtude do menor risco de desenvolvimento de S. pseudintermedius multirresistente. A administração sistêmica de antimicrobianos só deve ser considerada quando o tratamento tópico não é eficaz ou se a profundidade e/ou localização da infecção excederem o alcance da terapia tópica. Para tanto, os antibióticos sistêmicos são selecionados com base em testes de sensibilidade bacteriana (antibiograma). Em geral, o curso terapêutico deve ser mantido por 2 semanas após a remissão das lesões. Dado o aparecimento emergente de S. pseudintermedius multirresistente em nível mundial, no entanto, é altamente aconselhável dar prioridade aos tratamentos tópicos no lugar da terapia antimicrobiana sistêmica repetida, sempre que a condição do paciente permitir.

sinais clínicos comuns de infecção bacteriana superficial secundária à dermatite atópica: pápulas

a

sinais clínicos comuns de infecção bacteriana superficial secundária à dermatite atópica: pústulas

b

sinais clínicos comuns de infecção bacteriana superficial secundária à dermatite atópica: colaretes eritematosos

c

Figura 4. Pápulas (a), pústulas (b) e colaretes eritematosos (c) são sinais clínicos comuns de infecção bacteriana superficial secundária à dermatite atópica.
© Yun-Hsia Hsiao

Fatores de complicação – Malassezia 

Malassezia pachydermatis é uma levedura dependente de lipídios, encontrada na superfície da pele. O excesso de lipídios na superfície, as alterações na função da barreira do estrato córneo e a reação imune aberrante na dermatite atópica canina podem contribuir para o crescimento excessivo desse patógeno oportunista 14. A colonização em filhotes caninos é similar à de Staphylococcus spp., com transmissão materna através de lambedura e amamentação nos primeiros estágios de vida. Quando as condições são favoráveis, a Malassezia pode se proliferar no estrato córneo, produzindo inúmeros antígenos e alérgenos 14. Esses antígenos podem penetrar na epiderme e desencadear uma resposta imune em cães com dermatite atópica, resultando em prurido e eritema. A Malassezia tende a se desenvolver em áreas da pele com muita umidade, como dobras cutâneas em torno de orelhas, lábios, ânus, axilas, região inguinal e patas/áreas interdigitais. A apresentação clínica pode incluir prurido e eritema, acompanhados de mau cheiro ou pele oleosa. Embora não exista um método de referência para o diagnóstico da dermatite por Malassezia, a avaliação diagnóstica geralmente se baseia na citologia cutânea e na apresentação clínica compatível; os exames de cultura, histopatologia e testes de IgE carecem de valor diagnóstico clínico substancial.

As principais opções terapêuticas se baseiam na administração de antifúngicos, como imidazóis, clotrimazol, climbazol, e miconazol tópicos. Xampus de terbinafina e clorexidina a 2%/miconazol a 2% também podem ser utilizados. Contudo, embora os agentes antissépticos possam diminuir substancialmente o crescimento excessivo de Malassezia, os produtos emolientes para banho contendo óleos de limpeza e os xampus emolientes com um hidratante à base de ceramidas também demonstraram eficácia clínica semelhante 15.

Fatores de complicação – pulgas e reações adversas a alimentos

O controle de pulgas e a eliminação de alérgenos alimentares são estratégias vitais no manejo da dermatite atópica canina, pois essas medidas ajudam a diminuir o limiar de prurido e, em última análise, melhoram a qualidade de vida do paciente. Para o controle eficaz das pulgas durante todo o ano, recomenda-se a administração oral de adulticidas, já que os banhos com xampu podem remover os produtos tópicos e reduzir a eficácia desses produtos. Os produtos à base de isoxazolinas demonstraram ter um rápido efeito, sendo capazes de eliminar as pulgas dentro de 24 horas após a administração, o que evita novas picadas desses ectoparasitas.

As reações adversas a alimentos podem coexistir com a dermatite atópica canina e, de fato, entre 9 e 50% dos cães com lesões indicativas desse tipo de dermatite têm esse tipo de reações. Para diferenciar entre reações adversas a alimentos e dermatite atópica (atribuída principalmente a alérgenos ambientais), deve-se fazer um teste com dieta de eliminação de 8 semanas de duração – período durante o qual o cão deve se alimentar exclusivamente com um alimento que contenha uma fonte proteica nova ou hidrolisada. Também é aconselhável considerar a realização de testes provocativos após o teste alimentar, a fim de identificar os alérgenos alimentares específicos e, posteriormente, removê-los da alimentação diária do cão. Embora o mecanismo imunológico exato das reações adversas a alimentos não seja totalmente compreendido, um estudo feito em cães acometidos por essas reações em que se observou uma melhora clínica significativa durante o ensaio com dieta de eliminação relatou que 90% voltaram a apresentar sinais clínicos (prurido, lambedura das patas, fricção do rosto) ao realizar o teste provocativo, alguns deles poucas horas após a ingestão do alimento 16

Yun-Hsia Hsiao

Sugere-se que os fatores ambientais desempenhem um papel significativo no desenvolvimento da dermatite atópica canina. O estilo de vida do cão, especialmente durante a fase de filhote, tem uma influência notável na maturação do sistema imunológico.

Yun-Hsia Hsiao

Controle e manejo da dermatite atópica canina

A dermatite atópica em cães é uma doença cutânea que não tem cura e, em geral, requer tratamento adaptado a cada paciente individualmente pelo resto da vida. A imunoterapia alérgeno-específica é considerada um tratamento específico, envolvendo a aplicação de concentrações gradativamente crescentes de alérgenos ambientais identificados por testes cutâneos e sorológicos de IgE. A eficácia clínica da imunoterapia alérgeno-específica gira em torno de 60% e, para se observar uma melhora notável,  geralmente são necessários 9 a 12 meses de tratamento 17. Recentemente, opções de imunoterapia intralinfática e sublingual foram introduzidas como alternativas ao método tradicional de injeção subcutânea. Essas opções oferecem uma indução mais rápida, e o primeiro método não necessita de agulha 18. Entretanto, é essencial tratar o prurido e as lesões cutâneas de forma contínua até que os sinais clínicos sejam aliviados através da imunoterapia alérgeno-específica. O manejo da dermatite atópica canina depende do estágio da doença – por exemplo, as crises agudas necessitam de uma intervenção imediata, enquanto a abordagem terapêutica para o controle de doenças crônicas ou a prevenção de recaídas é diferente. Como o prurido é o principal sinal da dermatite atópica e as lesões cutâneas secundárias são comuns, o tratamento deve focar na diminuição dessa coceira. Dependendo da intensidade do prurido e da distribuição e extensão das lesões, pode-se optar por medicação tópica e/ou sistêmica. Para controlar as crises agudas, os glicocorticoides (tópicos e sistêmicos) e o oclacitinibe são considerados os fármacos mais eficazes por sua rápida ação, embora os glicocorticoides sejam conhecidos por seus efeitos adversos em potencial, como poliúria, polidipsia, polifagia, maior suscetibilidade a infecções, e hiperadrenocorticismo iatrogênico. O uso de glicocorticoides a longo prazo ou em altas doses requer monitoramento rigoroso e utilização de alternativas, se possível. Quando a intensidade das lesões cutâneas é reduzida a ponto de se tornarem brandas (leves), é preferível utilizar o oclacitinibe por sua eficácia no tratamento de prurido residual e das crises leves, uma vez que esse agente diminui a via de sinalização pruritogênica e as citocinas pró-inflamatórias. Contudo, após a fase inicial de administração do oclacitinibe duas vezes ao dia por 14 dias (i. e., duas semanas), os pacientes frequentemente apresentam um efeito rebote quando a frequência da dose é reduzida para uma vez ao dia 19. Para prevenir isso, o tratamento pode ser combinado com a administração tópica de aceponato de hidrocortisona 20

Essas abordagens podem ser consideradas como terapia reativa, devendo ser utilizadas principalmente durante crises contínuas ou para controle do prurido. Uma vez controladas as lesões cutâneas, o tratamento deverá ser modificado, lançando-se mão de medicamentos-alvo com menos efeitos colaterais ao animal, como ciclosporina e tacrolimo. A ciclosporina é um inibidor da calcineurina que se liga ao citoplasma dos linfócitos, inibindo a ativação das células T e seus mediadores regulatórios. Apesar disso, a ciclosporina leva de 2 a 4 semanas para demonstrar eficácia clínica e tem meia-vida longa; portanto, há uma maior probabilidade de reduzir a frequência de administração do que com outros fármacos. A ciclosporina é considerada segura para a administração a longo prazo, embora os pacientes possam apresentar efeitos adversos no início, como vômitos e diarreia, que costumam desaparecer espontaneamente, sem tratamento adicional. A pomada de tacrolimo não provoca reações adversas (p. ex., atrofia cutânea ou comedões) observadas com os glicocorticoides tópicos, mas alguns cães podem exibir leve irritação. Em casos bem controlados, recomenda-se o uso de lokivetmabe (anticorpo monoclonal que tem como alvo a interleucina (IL)-31, um mediador comum do prurido em pacientes caninos com dermatite atópica) como terapia proativa 21. O objetivo é reduzir de forma persistente a inflamação subclínica residual que poderia desencadear crises agudas.

Para prevenir a recorrência da dermatite atópica canina, o restabelecimento direto da função da barreira cutânea é outro fator importante. Para tanto, há muito tempo se empregam as dietas enriquecidas com ácidos graxos essenciais ou a administração oral desses ácidos graxos. Foi demonstrado que o uso de ácidos graxos essenciais em cães com dermatite atópica durante um período de 9 meses pode reduzir a dose de fármacos e a pontuação do prurido 22. Em contrapartida, não há evidências que respaldem o emprego de anti-histamínicos e probióticos como opções para o tratamento da dermatite atópica canina.

Considerações finais 

A dermatite atópica canina é uma doença cutânea pruriginosa crônica e recorrente, comumente observada na clínica veterinária. A patogênese envolve fatores relacionados com a alteração da barreira cutânea, tais como: genes associados a estrato córneo defeituoso, microrganismos da microbiota, e aspectos relativos ao ambiente que influenciam o equilíbrio imunológico. Embora as estratégias e as opções de tratamento tenham avançado significativamente na última década, o primeiro passo é realizar um diagnóstico correto. As infecções por bactérias e/ou leveduras concomitantes pode comprometer a eficácia do tratamento e, em última análise, a escolha da terapia depende da fase e da gravidade da doença. Apesar de a dermatite atópica não ter cura, uma abordagem multimodal pode proporcionar ao paciente uma boa qualidade de vida. Garantir a integridade da barreira cutânea deve ajudar a prevenir futuras exacerbações de prurido e inflamação. 

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Yun-Hsia Hsiao

Yun-Hsia Hsiao

A Dra. Hsiao obteve seu diploma de médica-veterinária na Universidade Chia-yi e concluiu um programa de mestrado em cirurgia na Universidade Chung-Hsing, em Taiwan Leia mais