Lipidose hepática felina
A lipidose hepática no gato é uma condição comum e potencialmente fatal, mas uma abordagem criteriosa pode muitas vezes culminar em um resultado positivo.
Número da edição 33.2 Comportamento
Publicado 01/04/2024
Disponível em Français , Deutsch , Italiano , Español e English
A eliminação em locais inadequados por parte dos gatos é um problema frequente para muitos tutores. Este artigo oferece uma abordagem holística para ajudar os clínicos a orientar seus clientes.
© Daria Kulkova
A eliminação em locais inadequados consiste em urinar ou defecar em um local que parece apropriado para o gato naquele momento, de acordo com suas necessidades físicas, emocionais e cognitivas.
A eliminação em locais inadequados é um problema complexo – que, muitas vezes, é de natureza multifatorial e ocorre como resultado de alterações na tríade de saúde: bem-estar físico, emocional e cognitivo.
Muitos tutores e cuidadores se mostram relutantes em falar sobre os comportamentos de eliminação em locais inadequados de seus gatos e, por isso, necessitam de apoio veterinário e incentivo para reconhecer o problema.
A identificação e a resolução de deficiências nos 5 pilares de um ambiente felino saudável são fundamentais para encontrar soluções para os problemas de eliminação em locais inadequados.
Há muito se presume que os gatos são uma espécie independente que requer cuidados mínimos – mas essa suposição pode muitas vezes resultar em deficiências no seu ambiente e na falha em atender às necessidades básicas de um gato. Como resultado, a saúde do gato, uma tríade composta por bem-estar físico, emocional e cognitivo (Figura 1), provavelmente será afetada de forma negativa. Os cuidadores têm controle quase total sobre a vida de seus gatos, tomando decisões sobre dieta, horários de alimentação, outros gatos e outros pets, brinquedos, áreas de descanso, e bandejas sanitárias. Apesar de ter mínimo ou nenhum controle, o gato continuará cooperando com as expectativas humanas enquanto ele puder e conseguir. No entanto, quando há deficiências no ambiente e alguma alteração na tríade da saúde, a capacidade de adaptação do gato diminui. Se essa perturbação envolver o uso de bandejas sanitárias, isso pode significar que locais alternativos se tornam o lugar apropriado para o gato urinar e/ou defecar. Portanto, a eliminação em locais inadequados consiste no ato de depositar urina ou fezes fora de uma área de toalete que o cuidador designou como aceitável (Quadro 1).
Quadro 1. Terminologia da eliminação em locais inadequados
Micção | O processo consciente de passagem da urina pela uretra distal |
Defecação | O processo consciente de passagem de fezes pelo reto |
Eliminação em locais inadequados |
O processo consciente ou inconsciente de depositar urina ou fezes fora da bandeja sanitária em superfícies horizontais e, às vezes, verticais; podem ser depositados volumes totais ou parciais
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Pulverização de urina |
O processo consciente de depositar urina fora da bandeja sanitária, normalmente em superfícies verticais e tipicamente associado ao comportamento de marcação territorial. Embora isso seja mais comumente observado em machos intactos, também pode ocorrer em machos castrados tardiamente e fêmeas intactas, bem como em machos e fêmeas castrados
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Periúria | Eliminação ou pulverização de urina pela casa |
Periquezia | Eliminação de fezes pela casa |
Marcação fecal (middening) | O processo consciente de depositar fezes em locais distintos geralmente como uma forma de marcação territorial |
Parte da terminologia usada em referência à eliminação em locais inadequados pode ter um impacto equivocado na(s) causa(s) percebida(s) e, especificamente, no comportamento e nas intenções do gato. Por exemplo, a palavra “inapropriado” (micção, defecação, toalete) é frequentemente utilizada, mas é errado considerar o comportamento como sendo inadequado, e errado também considerar que o gato tem consciência disso e está agindo com intenção maliciosa. Na falta de autorreflexão e do diálogo interno, os gatos não evitam a bandeja sanitária por vingança ou outros motivos vingativos 1. Quando defecam ou urinam, eles tomam a decisão de fazer isso em um local que lhes seja adequado naquele momento e atenda às suas necessidades, tal como fariam ao ar livre. Ao aplicar a linguagem correta e evitar termos como “micção ou defecação inapropriada”, podemos desviar corretamente os cuidadores do conceito de mau comportamento e focar em quais são as necessidades essenciais do gato, com o objetivo de resolver o problema. De igual ou maior importância é que, ao orientar todos os cuidadores sobre as necessidades básicas do gato antes que os problemas ocorram, podemos prevenir ativamente o surgimento de questões relativas à eliminação em locais inadequados.
A eliminação em locais inadequados é um problema multifatorial que sinaliza a existência de perturbações ou transtornos no bem-estar físico, emocional ou cognitivo do gato. Os principais diagnósticos diferenciais clínicos para a micção fora da bandeja sanitária em gatos incluem doença do trato urinário inferior, constipação, desidratação, doença neurológica, e/ou neoplasia. A doença do trato urinário inferior dos felinos descreve um grupo de enfermidades dessa porção do trato urinário que podem apresentar sinais clínicos sobrepostos e não são necessária e mutuamente exclusivos. Essas enfermidades compreendem cistite idiopática felina, urolitíase, cristalúria, infecção urinária, e/ou neoplasia vesical. Os principais diagnósticos diferenciais clínicos para a defecação fora da bandeja sanitária abrangem anormalidades estruturais, constipação, condições neurológicas, doenças do trato urinário, enteropatias, desidratação, e/ou neoplasia. Além disso, qualquer condição que cause dor pode contribuir para o uso inconsistente da bandeja sanitária e o sentimento de aversão a ela. As deficiências nas necessidades ambientais do gato que podem levar à eliminação em locais inadequados englobam a disponibilidade insuficiente ou, então, a distribuição ou manejo incorretos dos recursos, como bandejas sanitárias, estações de alimentação e/ou água, superfícies para arranhar, e locais para dormir. Problemas entre gatos também podem fazer com que eles evitem a bandeja sanitária. Os gatos que residem em lares com vários gatos podem ter acesso reduzido se não houver bandejas sanitárias suficientes disponíveis ou se um gato bloquear o acesso. Machos intactos ou aqueles castrados após o início da puberdade, e inclusive alguns machos e fêmeas castrados, podem apresentar eliminação em locais inadequados na forma de marcação territorial com urina (pulverização) ou fezes (middening, deposição de fezes não enterradas em locais incomuns). A suposta natureza territorial de certos tipos de eliminação em locais inadequados não exclui a necessidade de uma avaliação médica completa 2.
Os cuidadores talvez não tenham a consciência de que seu gato está apresentando eliminação em locais inadequados ou só tomam conhecimento do problema depois de um longo período de tempo. Eles podem tirar conclusões precipitadas sobre a(s) causa(s) e tentar resolver o problema por conta própria. Também é possível que eles não comuniquem o problema, seja porque desconhecem o potencial de doença e dor associadas à eliminação em locais inadequados ou pela falta de disposição em prosseguir com o que consideram de forma equivocada um processo potencialmente dispendioso e fadado ao insucesso. Em uma pesquisa por telefone conduzida em 2016 com 281 domicílios que possuíam 455 gatos, foi relatado que 26% de todos os gatos do estudo haviam urinado ou defecado fora da bandeja sanitária em algum momento de suas vidas 3, mas apenas 31,7% desses gatos foram avaliados por um médico-veterinário para essa condição. Para 56,7% dos gatos, o comportamento desapareceu, mas para o restante o comportamento persistiu. Isso dá respaldo à experiência na prática clínica, em que os cuidadores permitem que a eliminação em locais inadequados continue, fazendo pouco ou nenhum esforço consistente para determinar um caminho para a resolução, por vezes durante meses ou anos. Às vezes, a eliminação em locais inadequados pode ser mencionada ao passar em uma consulta de cuidados preventivos e, outras vezes, os cuidadores podem desconsiderar a eliminação em locais inadequados como um comportamento “vingativo”. O uso da bandeja sanitária, bem como os processos de micção e defecação, devem ser incluídos como parte de cada anamnese. Perguntas fechadas com respostas de “sim” ou “não” não dão ao cuidador a devida oportunidade de avaliar e relatar com precisão as atividades do seu gato. Perguntas abertas aumentarão a divulgação de informações ao proporcionar certo grau de aceitabilidade à atividade sobre a qual estamos questionando e ao permitir que o cuidador fale com suas próprias palavras. Por exemplo, uma pergunta fechada como “Seu gato usa a bandeja sanitária?” deve ser substituída por “Com que frequência seu gato urina ou defeca fora da bandeja sanitária?” ou “Em que lugar seu gato urina ou defeca fora da bandeja sanitária?” Para o gato com eliminação em locais inadequados intermitente fora da bandeja sanitária, é provável que a resposta à pergunta fechada seja “sim”, mas as respostas às perguntas abertas provavelmente serão muito mais reveladoras.
Kelly A. St. Denis
Ao se determinar a presença de eliminação em locais inadequados em um gato, a identificação do animal e a obtenção de histórico detalhado do problema exigem uma atenção especial (Quadro 2). A identificação pode sugerir ou eliminar certos diagnósticos diferenciais – por exemplo, gatos machos castrados apresentam maior risco de doença do trato urinário inferior. As informações do histórico devem incluir dieta (marca, enlatada ou seca, petiscos), apetite (quantidades reais de ingestão alimentar), perda ou ganho de peso percebido, consumo de água, bem como características da urina e das fezes do gato. Um gato adulto saudável urina cerca de 30 a 40 mL/kg por dia, embora existam grandes variações, dependendo da dieta, do consumo de água e do estado de saúde. Os cuidadores devem ser questionados sobre alterações no diâmetro ou tamanho dos aglomerados ou grumos de urina e incentivados a ter maior consciência dos volumes de urina de cada gato da casa. Isso pode ser mais fácil de monitorar do que se imagina, especialmente se determinados gatos tiverem bandejas sanitárias preferidas para usar. Também é possível a configuração de câmeras para coletar mais informações. A defecação ocorre normalmente uma ou duas vezes ao dia, embora se possa observar um padrão menos frequente, mas regular (p. ex., a cada 48 horas), em alguns gatos. As características das fezes, incluindo a consistência, devem ser avaliadas com o uso de uma tabela específica de escore fecal. Essa avaliação fornecerá detalhes significativos sobre as fezes, ainda que o cuidador as considere “normais”. O clínico deve obter informações sobre a duração do problema, outras mudanças de comportamento, quando e onde ocorre o problema, sob quais circunstâncias aparentes, os cuidados com a bandeja sanitária, e em que condições o gato a utiliza (se for o caso). Um censo de outros pets da casa deve incluir uma avaliação das relações entre os animais de estimação, particularmente em lares com vários gatos, pois este é um fator de risco conhecido para a eliminação em locais inadequados 4.
Quadro 2. Informações importantes do histórico para avaliar a eliminação em locais inadequados em gatos
Histórico geral de saúde e cuidados |
Apetite (ingestão diária real), dieta (marca, úmida ou seca, petiscos), hábitos de consumo de água, perda ou ganho de peso percebido, vômitos, diarreia, tosse, espirros, nível de atividade, medicamentos, e suplementos
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Características da urina | Frequência, (alterações no) diâmetro/tamanho do aglomerado de urina, cor, odor, evidência de dificuldade durante a micção |
Características das fezes |
Tamanho, odor, volume, frequência, cor, presença de sangue vivo ou alterado, existência de muco, escore fecal, qualquer evidência de dificuldade durante a defecação
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Informações sobre a eliminação em locais inadequados |
Duração do problema, quando e onde o problema está acontecendo, sob quais circunstâncias ou gatilhos, detalhes sobre os cuidados com a bandeja sanitária, em que condições o gato a utiliza (se for o caso), outros pets da casa, relações entre os pets
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Outras mudanças de comportamento |
Aumento do sono, redução das brincadeiras, maior/menor interação com o cuidador, aumento/diminuição da lambedura (especificamente para uma região do corpo ou generalizado), esconder-se, alterações na mobilidade (saltar para cima ou para baixo, caminhar, subir e descer escadas)
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Um exame físico completo e exaustivo é fundamental para identificar alterações físicas que são secundárias a alguma doença ou predispõem a problemas em relação ao uso da bandeja sanitária. Por exemplo, gatos obesos podem ter problemas de mobilidade, mas também podem ser diabéticos, o que causa poliúria e predispõe à infecção do trato urinário inferior – todas elas possíveis causas de eliminação em locais inadequados. Todos os gatos acometidos devem ser submetidos a uma urinálise básica (incluindo avaliação macroscópica, densidade urinária, análise bioquímica, e microscopia do sedimento urinário). Isso inclui casos de eliminação em locais inadequados, já que alguns desses pacientes podem sentir dor ao urinar, levando-os a defecar longe da bandeja sanitária por conta dessa dor. A cistocentese é o padrão-ouro para a coleta de urina, pois reduz o risco de resultados falso-positivos nos sedimentos ou na cultura 5, e o ideal é que as amostras sejam avaliadas imediatamente para diminuir o risco da formação de estruvita em uma amostra armazenada, o que pode resultar em um falso diagnóstico de cristalúria 6. A urocultura e o antibiograma devem ser realizados em qualquer gato com sedimento ativo (leucócitos, bactérias), densidade urinária baixa e/ou glicosúria 5. A hematúria na ausência de quaisquer outras alterações pode ser iatrogênica, mas também é característica de gatos com doença do trato urinário inferior, em particular daqueles que sofrem um episódio de cistite idiopática felina 7,8. O monitoramento da hematúria microscópica é possível em casa utilizando um aditivo disponível no mercado para substrato de bandejas sanitárias que seja altamente sensível para a detecção de sangue. Outra parte importante do banco de dados mínimo exigido para descartar doenças sistêmicas são os exames de sangue, especialmente em gatos de meia-idade (7 a 10 anos) ou mais idosos 9. Os testes relevantes incluem painéis bioquímicos clínicos, eletrólitos, T4 total, hemograma completo, e provas retrovirais. As avaliações da pressão arterial também serão críticas em gatos com mais de 8 anos de idade, uma vez que a hipertensão pode provocar mudanças de comportamento, inclusive eliminação em locais inadequados. Outras investigações incluem imagens do abdômen obtidas por radiografia simples ou contrastada, ultrassonografia, ou outras modalidades 10,11.
Considerando que a eliminação em locais inadequados é uma questão multifatorial, é essencial identificar e resolver os problemas médicos; no entanto, é igualmente importante avaliar o ambiente do gato. Como carnívoros obrigatórios, os gatos são uma espécie única, pois são predadores, mas também presas; por isso, eles precisam de um território onde possam caçar com segurança e que lhes forneça os recursos essenciais, com o mínimo de ameaça de predação ou competição. Suas necessidades gerais estão descritas nos cinco pilares de um ambiente felino saudável (Figura 2) 12. As deficiências em um ou mais pilares podem predispor a alterações na tríade da saúde, levando potencialmente a problemas como eliminação em locais inadequados. Ao avaliar o ambiente doméstico do gato, o ideal é fornecer ao cuidador informações detalhadas sobre esses cinco pilares e trabalhar juntamente com ele para avaliar quais deficiências podem existir. E então podem ser considerados ajustes no ambiente e na gestão de recursos. Os cuidadores também podem ser incentivados a monitorar o ambiente do gato para detectar alterações nos cinco pilares no futuro, o que pode facilitar correções imediatas e evitar mais problemas.
Os gatos precisam se sentir seguros em seu próprio território doméstico, e essa sensação de segurança deve vir da sua própria perspectiva, e não da do tutor/cuidador (já que muitas pessoas presumem que o seu gato está e deve se sentir seguro dentro de seu lar). Os tutores e cuidadores podem não ter consciência das possíveis ameaças externas e esperar erroneamente que o gato entenda que essas ameaças não conseguem entrar em casa. Por exemplo, gatos das adjacências que vivem ao ar livre (outdoor) podem não ter acesso à casa, mas a visão, o som e/ou o cheiro deles podem levar o gato que vive dentro de casa (indoor) a perceber uma ameaça à sua própria segurança e recursos. Dentro do ambiente doméstico, também pode haver odores, ruídos ou outros animais ou humanos que façam o gato se sentir inseguro. Como os cuidadores não têm total controle sobre isso em todos os momentos, é necessária a existência de espaços em toda a casa onde o gato possa se esconder e assim aumentar sua percepção de segurança (Figura 3).
Dentro do território do gato, os principais recursos ambientais incluem fontes separadas de água e alimento; bandejas sanitárias manejadas da devida forma; locais de descanso em diferentes alturas verticais, alguns dos quais só se adaptam a um único gato (Figura 4); e múltiplos recursos de arranhadura. Como caçadores solitários, recomenda-se que os gatos sejam alimentados individualmente em acomodações separadas ou com barreiras visuais de, no mínimo, 2 metros de distância entre eles 13. Embora não haja pesquisas definitivas e conclusivas, os especialistas em felinos recomendam que as vasilhas de água sejam colocadas distantes das estações de alimentação, já que a preferência natural do gato é manter a comida longe das fontes de água. Todos os recursos devem ser disponibilizados em múltiplos lugares e distribuídos pelas diversas áreas da casa; isso permite ao gato a opção de escolher um recurso em uma determinada localização se outro local não parecer seguro ou não for de fácil acesso naquele momento. Por exemplo, se outro gato bloquear o acesso a uma bandeja sanitária específica, uma segunda bandeja sanitária em um local diferente pode evitar um evento de eliminação em locais inadequados.
Os instintos naturais de caça do gato exigem uma saída, mesmo em um ambiente interno (indoor) onde há comida disponível. Comedouros tipo quebra-cabeça podem promover o comportamento predatório e manter a acuidade mental. Brincadeiras interativas com os cuidadores por curtos períodos, uma ou mais vezes ao dia, também ajudarão a satisfazer o impulso predatório do gato. Talvez seja necessário que os cuidadores tentem vários comedouros tipo quebra-cabeças e estilos de brinquedos diferentes para determinar o que seu gato prefere, trocando esses itens conforme as preferências do gato mudam. As atividades lúdicas e o comportamento predatório melhoram a aptidão física e a acuidade mental.
Os gatos são naturalmente solitários por natureza e, embora se envolvam socialmente com os seres humanos, eles preferem interagir da sua maneira e por iniciativa própria. Como uma espécie social, os humanos prefeririam ter mais interações físicas com o seu gato e talvez queiram fazer isso de uma forma espontânea e em momentos que não correspondam aos desejos do gato. Além disso, nem todos os humanos sabem como interagir respeitosamente com os gatos. Uma pessoa pode agir de uma maneira que os gatos não gostam, como esfregá-los ou acariciá-los vigorosamente e/ou tocá-los em partes do corpo que eles não desejam que sejam tocadas; segurá-los contra a vontade deles; ou apanhá-los quando eles não querem. “Brincar com as mãos” também é um problema quando se trata de gatos, já que isso pode provocar lesões (mordidas, arranhões, etc.) e outros comportamentos repulsivos; além de não ser uma atividade lúdica apropriada, isso aumenta a ansiedade do gato. As interações sociais humanas que fazem com que o gato sinta medo ou ansiedade aumentarão a probabilidade de comportamentos indesejados, inclusive o de eliminação em locais inadequados.
Os gatos têm um olfato significativamente mais aguçado que o dos humanos. As inúmeras fragrâncias e essências (aromas) apreciadas pelos humanos em seus lares, inclusive areia perfumada para gatos, podem reduzir a capacidade de exploração do território por esses animais quanto à presença de predadores, fazendo com que os felinos se sintam inseguros. Esses odores também são potencialmente irritantes para os sentidos do gato.
As bandejas sanitárias são um recurso essencial do Pilar 2 que necessitam de atenção especial ao avaliar os casos de eliminação em locais inadequados. Espera-se que os gatos urinem e defequem dentro de caixas ou recipientes prescritos que normalmente contenham um substrato próprio para cavar um buraco e enterrar suas fezes ou urina. Os humanos que convivem com o(s) gato(s) tomam decisões sobre o número dessas bandejas, a quantidade de gatos que irão compartilhá-las, o tamanho (pequena ou grande), a localização e o conteúdo delas, bem como sobre a frequência com que serão limpas. Ao ar livre, os gatos domésticos tomam todas essas decisões com base em suas próprias necessidades, incluindo uma sensação de segurança, suas preferências, e os limites que definem o seu próprio território. Embora os gatos geralmente aceitem o que está disponível, um gato com o comportamento de eliminação em locais inadequados provavelmente desenvolveu alguma aversão ou objeção à bandeja sanitária que pode estar relacionada à bandeja em si. Durante a consulta inicial sobre eliminação em locais inadequados, é útil fornecer aos cuidadores uma lista de critérios preferenciais de bandejas sanitárias para os gatos (Quadro 3). Os cuidadores podem mencionar que o seu gato nunca teve qualquer dificuldade com a questão da bandeja sanitária, mas é importante enfatizar que a aceitação de certos padrões de bandeja depende de um bom bem-estar físico, emocional e cognitivo. Nos casos em que há uma saúde comprometida, é pouco provável que o gato esteja tão disposto ou seja capaz de tolerar bandejas sanitárias que não atendam a esses critérios. A eliminação em locais inadequados por vezes diminui em termos de frequência ou é completamente interrompida quando os critérios da bandeja sanitária são atendidos.
Quadro 3. Critérios para as bandejas sanitárias.
Número de bandejas sanitárias
Localização das bandejas sanitárias na casa
Tamanho da bandeja sanitária
Tipo de substrato da bandeja
Profundidade do substrato
Limpeza regular da bandeja
Manter as bandejas distantes do alimento
Medidas para evitar associações negativas
Bandejas sanitárias cobertas
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Com frequência, presume-se que os gatos precisam de outro companheiro felino na casa e se sentirão sozinhos sem ele; no entanto, a natureza inerentemente solitária do gato significa que, na maioria dos casos, eles preferem não compartilhar o seu território ou recursos. Isso não quer dizer que os gatos não possam formar relacionamentos positivos com outros gatos da casa, mas ser solitário é o comportamento social padrão preferido dos felinos. Os gatos podem formar vínculos sociais com outros gatos da casa e se tornar amigos, porém o mais frequente é que eles se tornem inimigos e convivam na mesma casa com o outro gato, seja em aparente indiferença ou com repetidas tensões entre os gatos (Quadro 4). Essas tensões muitas vezes passam despercebidas pelo cuidador, mas podem ser uma das principais causas de estresse e subsequente eliminação em locais inadequados em um lar com vários gatos. A capacidade dos cuidadores de reconhecer se os gatos são amigos ou inimigos é muito limitada, devido à sua falta de compreensão dos cinco pilares, da linguagem corporal dos gatos e das interações entre eles. Os gatos que coabitam e são amigos expressarão comportamentos de afiliação, incluindo lambedura mútua e recíproca (lamber um ao outro), dormir juntos (em contato físico ou muito próximos) e outros comportamentos fisicamente interativos, como tocar o nariz, enrolar a cauda, esfregar o rosto ou o corpo, e brincar. Os gatos inimigos raramente ou nunca expressam comportamentos afiliativos, mas, em vez disso, evitam uns aos outros para minimizar conflitos e, possivelmente, expressam comportamentos agonísticos. Os inimigos podem compartilhar recursos por um tempo ou, então, um gato pode bloquear o acesso aos recursos; além disso, os gatos podem trocar mensagens vocais repulsivas (sibilos ou rosnados) e brigar. Em alguns casos, também é difícil discernir a diferença entre brincadeira e briga 14, tornando a identificação de amigo ou inimigo mais desafiadora. Os gatos que estão brincando se revezam no início da atividade, com períodos de descanso ao longo do tempo, e há pouco ou nenhum rosnado ou sibilo. Às vezes, as brigas podem parecer uma brincadeira, já que os gatos se envolvem em lutas livres e perseguições, mas essas atividades geralmente são iniciadas pelo mesmo gato, algumas vezes com comportamento de perseguição ameaçadora; além disso, não há períodos de descanso, e os rosnados e sibilos são frequentes, com consequentes lutas físicas. Os comportamentos relacionados com gatos inimigos não decorrem de uma hierarquia de dominância, o que não faz parte das estruturas sociais dos gatos 15, mas sim da necessidade de proteger o território e os recursos, que parecem limitados. Para atender às necessidades de cada gato da casa, cada animal individualmente deve ter livre acesso aos seus próprios recursos essenciais, idealmente posicionados fora da vista dos outros gatos. Isso dá aos gatos a oportunidade de desenvolver seu próprio território dentro da casa, evitando os demais tanto quanto quiserem.
Quadro 4. Amigo ou inimigo? Indicadores de uma relação amistosa ou inimiga.
Amigos | Inimigos |
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Como um problema multifatorial, a melhor abordagem terapêutica da eliminação em locais inadequados é feita a partir de uma perspectiva holística. Isso significa abordar o bem-estar físico, emocional e cognitivo do gato, em vez de focar em soluções unidimensionais. Muitas vezes, os problemas entre gatos em lares com vários gatos podem ser resolvidos avaliando as deficiências nos cinco pilares, incluindo o cumprimento de todos os critérios das bandejas sanitárias, se possível, enquanto os gatos diagnosticados com determinadas condições médicas necessitarão de terapia específica, além de ajustes no ambiente.
Uma mudança na dieta pode ser útil no manejo a longo prazo de gatos com problemas de eliminação em locais inadequados. Embora as dietas de prescrição direcionadas a condições médicas específicas sejam importantes, pode ser recomendada uma troca na formulação (p. ex., de seca para enlatada). Por exemplo, os gatos com doença do trato urinário inferior se beneficiarão não só de um alimento terapêutico específico, mas também de uma transição para uma dieta úmida como um meio de promover uma urina mais diluída. Gatos com excesso de peso (sobrepeso) que desenvolvem problemas com a bandeja sanitária devem iniciar um programa de perda progressiva de peso. Nos casos em que a eliminação em locais inadequados envolve um aumento da ansiedade ou uma diminuição da capacidade de lidar com fatores indutores de estresse (como gatos com cistite idiopática felina), alimentos que contenham suplementos calmantes podem ser incorporados ao plano terapêutico 16, mas eles devem ser a única fonte de nutrição do gato e usados de forma consistente a longo prazo. Produtos nutracêuticos que auxiliam na redução da ansiedade ou alteram a inflamação são potencialmente benéficos; produtos que contêm L-teanina, alfa-S1 caseína tríptica, proteína hidrolisada do leite (também conhecida como caseína hidrolisada ou alfacasozepina), proteína do soro do leite e/ou ácidos graxos ômega-3 estão, sem exceção, disponíveis no mercado para gatos 17.
Os analgésicos são frequentemente esquecidos em casos de eliminação em locais inadequados , mas a dor pode desempenhar um papel direto no fato de o gato evitar a bandeja sanitária por inúmeros motivos. Por exemplo, gatos adultos correm maior risco de sofrer doença articular degenerativa 18, o que pode diminuir a mobilidade, reduzir a facilidade de acesso às bandejas sanitárias, e predispor à eliminação em locais inadequados . Portanto, a analgesia deve ser um dos principais componentes da maioria dos planos terapêuticos para gatos com o comportamento de eliminação em locais inadequados sempre que uma doença clínica for diagnosticada.
Diversos fármacos de modificação comportamental vêm sendo utilizados de forma empírica em gatos com problemas de eliminação em locais inadequados , mas sua eficácia varia dependendo do caso. O tratamento da eliminação em locais inadequados será mais bem-sucedido mediante a formulação de um diagnóstico preciso (exato) e quando as necessidades do paciente forem atendidas; além disso, todas as questões médicas e nutricionais, bem como aquelas relacionadas com o ambiente e os recursos, devem ser abordadas antes ou em conjunto com o uso de agentes farmacológicos. Os problemas de ansiedade melhoram com ajustes no ambiente 19, mas em alguns casos podem ser necessários medicamentos ansiolíticos (inibidores seletivos da recaptação de serotonina [SSRIs], antidepressivos tricíclicos [TCAs], etc.) ou outros fármacos modificadores do comportamento (Quadro 5). Os cuidadores devem entender que estes últimos medicamentos podem levar dias ou semanas para fazer efeito e não funcionarão sem outras estratégias de manejo. Os fármacos de modificação comportamental devem ser utilizados como último recurso e considerados como um dos componentes da abordagem holística, visando sua descontinuidade ao longo do tempo. A seleção dos medicamentos será feita com base nas áreas de preocupação identificadas, sejam elas baseadas na ansiedade ou secundárias a problemas entre gatos em uma casa com vários gatos.
Quadro 5. Medicamentos psicotrópicos que podem ser necessários para complementar outras abordagens terapêuticas para eliminação em locais inadequados. As intervenções medicamentosas não funcionarão na ausência de outras estratégias de manejo e devem ser utilizadas como último recurso, com a intenção de interromper seu uso ao longo do tempo. A seleção do medicamento será feita caso a caso, e pode haver a necessidade de períodos de intervalo (descanso) entre os medicamentos (p. ex., a transição de um antidepressivo tricíclico [TCA] ou inibidor seletivo da recaptação de serotonina [SSRI] para um inibidor da monoamina oxidase (MAOI) requer um período de intervalo de 5 semanas. Nota: TCA ou SSRIs nunca devem ser usados com IMAO-B (de 20).
Nome do fármaco | Dosagem | Indicações | Efeitos colaterais | Comentários |
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Anticonvulsivante | ||||
Gabapentina | 5-20 mg/kg VO a cada 8-12 horas | Ansiolítico, analgesia | Sedação, ataxia | Diminuir a dose para gatos fragilizados e aqueles com doença renal crônica |
Benzodiazepínicos | ||||
Alprazolam | 0,02-0,1 mg/kg VO a cada 8 horas | Ansiedade, marcação com urina, doença do trato urinário inferior | Sedação, ataxia, desinibição de comportamentos indesejáveis | Iniciar com a dose mais baixa |
Inibidor seletivo da recaptação de serotonina (SSRI) | ||||
Fluoxetina | 0,5-1,0 mg/kg VO a cada 24 horas | Ansiedade, eliminação em locais inadequados | Agitação, ansiedade, sedação, inapetência | 4-6 semanas para fazer efeito |
Antidepressivo tricíclico (TCA) | ||||
Amitriptilina | 0,5-2,0 mg/kg VO a cada 24 horas | Ansiedade, comportamento de marcação, comportamentos compulsivos | Sedação, alterações do apetite, vômitos, retenção urinária, constipação, diarreia, taquicardia |
> 1 semana para fazer efeito
Gosto amargo Reduzir a dose gradativamente para descontinuar |
Clomipramina | 0,25-0,5 mg/kg VO a cada 24 horas | > 1 semana para fazer efeito | ||
Inibidor da monoamina oxidase B (MAOI-B) | ||||
Selegilina | 0,25-1,0 mg/kg VO a cada 24 horas | Disfunção cognitiva | Inquietação, agitação, vômitos, diarreia, desorientação, perda auditiva | A dose pode ser dividida a cada 12 horas |
Azapironas | ||||
Buspirona | 0,5-1,0 mg/kg VO a cada 8-24 horas | Ansiedade, marcação com urina, problemas de toalete | Bradicardia ou taquicardia, nervosismo, distúrbios GI, comportamentos estereotipados | ~ 1 semana para fazer efeito |
A resolução de problemas de eliminação em locais inadequados requer uma abordagem de equipe dedicada para isso, incluindo o cuidador e o pessoal veterinário. Os cuidadores devem estar cientes da natureza multifatorial do problema desde o princípio. Isso facilitará a elaboração de um plano terapêutico que possa ser bem-sucedido ao longo do tempo e evite a ideia errada de que o problema é uma questão de resolução única e imediata. Raramente existem soluções simples, mas, quanto mais cedo um problema for identificado, mais claro será o caminho para a resolução. Por vezes, é possível que a eliminação em locais inadequados esteja ocorrendo há muito tempo, e isso pode aumentar os desafios associados à resolução do problema; a equipe veterinária deve se comprometer a prestar assistência contínua aos cuidadores durante todo o processo, promovendo uma boa comunicação em todos os momentos.
Bradshaw, J. Thoughts and Feelings. In Cat Sense; How the new feline science can make you a better friend to your pet. New York, NY: Basic Books; 2013;123-156.
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Kelly A. St. Denis
A Dra. St. Denis é especialista em medicina felina, certificada pelo American Board of Veterinary Practitioners (Conselho Norte-americano de Clínicos Veterinários) nessa especialidade Leia mais
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