Sinais clínicos adicionais, porém menos frequentes, podem surgir secundariamente a complicações associadas à lipidose hepática felina (p. ex., diátese hemorrágica; encefalopatia hepática; síndrome de fragilidade cutânea) ou à etiologia subjacente (p. ex., febre com infecções ou doenças inflamatórias, como pancreatite; poliúria e polidipsia em gatos com doença renal ou diabetes, etc.).
Achados clinicopatológicos
A indicação bioquímica de lipidose hepática felina consiste no aumento da atividade da fosfatase alcalina – que, no caso, ocorre em > 80% dos gatos acometidos 7Center SA, Crawford MA, Guida L, et al. A retrospective study of 77 cats with severe hepatic lipidosis: 1975-1990. J. Vet. Intern. Med. 1993;7(6):349-359.
,9Kuzi S, Segev G, Kedar S, et al. Prognostic markers in feline hepatic lipidosis: a retrospective study of 71 cats. Vet. Rec. 2017;181(19):512.
,11Center SA, Baldwin BH, Dillingham S, et al. Diagnostic value of serum gamma-glutamyl transferase and alkaline phosphatase activities in hepatobiliary disease in the cat. J. Am. Vet. Med. Assoc. 1986;188(5):507-510.
. Experimentally, increased ALP levels precede the development of hyperbilirubinemia 8Biourge VC, Groff JM, Munn RJ, et al. Experimental induction of hepatic lipidosis in cats. Am. J. Vet. Res. 1994;55(9):1291-1302.
, Do ponto de vista experimental, níveis aumentados de fosfatase alcalina precedem o desenvolvimento de hiperbilirrubinemia (8), e isso é considerado um marcador altamente sensível e bastante específico da lipidose hepática felina. Por outro lado, a atividade da gamaglutamiltranspeptidase (GGT) raramente aumenta, a menos que haja uma doença colestática/biliar concomitante 11Center SA, Baldwin BH, Dillingham S, et al. Diagnostic value of serum gamma-glutamyl transferase and alkaline phosphatase activities in hepatobiliary disease in the cat. J. Am. Vet. Med. Assoc. 1986;188(5):507-510.
. Um aumento discrepante na atividade da fosfatase alcalina diante de uma atividade normal ou levemente aumentada da GGT é, portanto, sugestivo de lipidose hepática felina. No entanto, existem diagnósticos diferenciais adicionais para o aumento da atividade da fosfatase alcalina, incluindo doenças hepatobiliares (p. ex., colangio-hepatite; obstrução biliar) e hormonais (p. ex., hipertireoidismo).
A hiperbilirrubinemia e o aumento das atividades da alanina (ALT)/aspartato (AST) aminotransferase são achados comuns e inespecíficos 7Center SA, Crawford MA, Guida L, et al. A retrospective study of 77 cats with severe hepatic lipidosis: 1975-1990. J. Vet. Intern. Med. 1993;7(6):349-359.
,9Kuzi S, Segev G, Kedar S, et al. Prognostic markers in feline hepatic lipidosis: a retrospective study of 71 cats. Vet. Rec. 2017;181(19):512.
. O acúmulo de gordura hepática, independentemente da etiologia, provoca tumefação celular e colestase intra-hepática, bem como danos oxidativos e inflamação secundária, resultando em aumento de atividade das transaminases – portanto, níveis anormais de transaminases hepáticas não implicam necessariamente uma hepatopatia subjacente adicional. Um aumento maior nas atividades de ALT/AST (em relação aos seus respectivos intervalos de referência), em comparação com o da atividade da fosfatase alcalina, pode sugerir uma doença subjacente adicional 7Center SA, Crawford MA, Guida L, et al. A retrospective study of 77 cats with severe hepatic lipidosis: 1975-1990. J. Vet. Intern. Med. 1993;7(6):349-359.
.
A baixa concentração de ureia pode ser atribuída a menor ingestão de proteínas e à disfunção do ciclo da ureia. Esta última alteração é agravada pelas deficiências de arginina e vitamina B12, que comumente ocorrem na lipidose hepática felina. Da mesma forma, a hiperamonemia pode se desenvolver secundariamente à insuficiência hepática, deficiência de vitamina B12 e ingestão alimentar inadequada de arginina, apresentando implicações clínicas e terapêuticas 1Valtolina C, Favier RP. Feline Hepatic Lipidosis. Vet. Clin. North Am. Small Anim. Pract. 2017;47(3):683-702.
,2Verbrugghe A, Bakovic M. Peculiarities of one-carbon metabolism in the strict carnivorous cat and the role in feline hepatic lipidosis. Nutrients 2013;5(7):2811-2835.
. Outros distúrbios observados com pouca frequência são inespecíficos e incluem hipoalbuminemia/hipoproteinemia por enteropatia perdedora de proteínas e/ou insuficiência de síntese hepática, hipocolesterolemia, e hipercolesterolemia associada à colestase 7Center SA, Crawford MA, Guida L, et al. A retrospective study of 77 cats with severe hepatic lipidosis: 1975-1990. J. Vet. Intern. Med. 1993;7(6):349-359.
,9Kuzi S, Segev G, Kedar S, et al. Prognostic markers in feline hepatic lipidosis: a retrospective study of 71 cats. Vet. Rec. 2017;181(19):512.
. A hipertrigliceridemia é comum em gatos obesos em geral e durante a lipidose hepática felina em particular 12Brown B, Mauldin GE, Armstrong J, et al. Metabolic and hormonal alterations in cats with hepatic lipidosis. J. Vet. Intern. Med. 2000;14(1):20-26.
. A hiperglicemia pode se desenvolver como consequência de resistência à insulina, pancreatite, ou diabetes mellitus evidente 7Center SA, Crawford MA, Guida L, et al. A retrospective study of 77 cats with severe hepatic lipidosis: 1975-1990. J. Vet. Intern. Med. 1993;7(6):349-359.
,9Kuzi S, Segev G, Kedar S, et al. Prognostic markers in feline hepatic lipidosis: a retrospective study of 71 cats. Vet. Rec. 2017;181(19):512.
. A hipoglicemia, por outro lado, é raramente observada 9Kuzi S, Segev G, Kedar S, et al. Prognostic markers in feline hepatic lipidosis: a retrospective study of 71 cats. Vet. Rec. 2017;181(19):512.
, mas pode surgir secundariamente à insuficiência hepática, sepse ou pancreatite e constitui um fator prognóstico negativo 13Nivy R, Kaplanov A, Kuzi S, et al. A retrospective study of 157 hospitalized cats with pancreatitis in a tertiary care center: Clinical, imaging and laboratory findings, potential prognostic markers and outcome. J. Vet. Intern. Med. 2018;32(6):1874-1885.
.
Em termos de desequilíbrio eletrolítico, a hipocalemia talvez seja o achado mais comum e clinicamente significativo em gatos com lipidose felina 1Valtolina C, Favier RP. Feline Hepatic Lipidosis. Vet. Clin. North Am. Small Anim. Pract. 2017;47(3):683-702.
. As complicações comuns incluem fraqueza muscular, incapacidade de concentrar adequadamente a urina com o aparecimento de poliúria/polidipsia, íleo gástrico e intestinal, exacerbação de encefalopatia hepática, e disfunção cardíaca em casos mais graves. A verdadeira magnitude da depleção de potássio é muitas vezes mascarada pela desidratação no momento da admissão hospitalar, e a instituição de alimentação enteral e parenteral pode exacerbar a hipocalemia 14Brenner K, KuKanich KS, Smee NM. Refeeding syndrome in a cat with hepatic lipidosis. J. Feline Med. Surg. 2011;13(8):614-617.
,15Boateng AA, Sriram K, Meguid MM, et al. Refeeding syndrome: treatment considerations based on collective analysis of literature case reports. Nutrition 2010;26(2):156-167.
. Portanto, é fundamental monitorar o paciente de perto e corrigir a concentração de potássio no sangue. Outras anormalidades eletrolíticas menos frequentes incluem hipomagnesemia e hipofosfatemia 1Valtolina C, Favier RP. Feline Hepatic Lipidosis. Vet. Clin. North Am. Small Anim. Pract. 2017;47(3):683-702.
,14Brenner K, KuKanich KS, Smee NM. Refeeding syndrome in a cat with hepatic lipidosis. J. Feline Med. Surg. 2011;13(8):614-617.
,15Boateng AA, Sriram K, Meguid MM, et al. Refeeding syndrome: treatment considerations based on collective analysis of literature case reports. Nutrition 2010;26(2):156-167.
. Essas alterações podem estar presentes na admissão hospitalar (secundárias à perda intestinal e urinária), mas costumam aparecer mais tarde no curso da doença após reidratação e início da alimentação parenteral ou enteral. O aparecimento dessas anormalidades eletrolíticas tem consequências nocivas, incluindo manifestações musculares/cardíacas e neurológicas (hipofosfatemia e hipomagnesemia), anemia hemolítica e trombocitopenia (hipofosfatemia), além do desenvolvimento de hipocalemia e hipocalcemia refratárias (hipomagnesemia).
As alterações no hemograma completo são diversas e inespecíficas, podendo se desenvolver secundariamente à doença subjacente ou como uma complicação da lipidose hepática felina. As alterações na morfologia dos eritrócitos incluem poiquilocitose ou pecilocitose, microcitose, e corpúsculos de Heinz 1Valtolina C, Favier RP. Feline Hepatic Lipidosis. Vet. Clin. North Am. Small Anim. Pract. 2017;47(3):683-702.
,6Webb CB. Hepatic lipidosis: Clinical review drawn from collective effort. J. Feline Med. Surg. 2018;20(3):217-227.
,7Center SA, Crawford MA, Guida L, et al. A retrospective study of 77 cats with severe hepatic lipidosis: 1975-1990. J. Vet. Intern. Med. 1993;7(6):349-359.
. Esta última alteração é o resultado do aumento do estresse oxidativo e da hipofosfatemia e pode contribuir para o desenvolvimento de anemia. Alternativamente, a hipofosfatemia grave pode resultar diretamente em anemia hemolítica 14Brenner K, KuKanich KS, Smee NM. Refeeding syndrome in a cat with hepatic lipidosis. J. Feline Med. Surg. 2011;13(8):614-617.
. A microcitose, quando grave, é sugestiva de deficiência de ferro ou doenças vasculares hepáticas (por exemplo, desvios [shunts] portossistêmicos).
As coagulopatias são comuns em gatos com lipidose hepática 1Valtolina C, Favier RP. Feline Hepatic Lipidosis. Vet. Clin. North Am. Small Anim. Pract. 2017;47(3):683-702.
,7Center SA, Crawford MA, Guida L, et al. A retrospective study of 77 cats with severe hepatic lipidosis: 1975-1990. J. Vet. Intern. Med. 1993;7(6):349-359.
e, em um único relato, mais de 90% dos casos apresentavam tempo de protrombina (TP) e/ou tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa) anormalmente prolongados 9Kuzi S, Segev G, Kedar S, et al. Prognostic markers in feline hepatic lipidosis: a retrospective study of 71 cats. Vet. Rec. 2017;181(19):512.
. Ao comparar o teste das proteínas induzidas pela ausência de vitamina K com os testes de TP/TTPa, a sensibilidade do primeiro é significativamente maior na detecção de coagulopatias associadas à vitamina K em gatos com doenças hepáticas e intestinais 16Center SA, Warner K, Corbett J, et al. Proteins invoked by vitamin K absence and clotting times in clinically ill cats. J. Vet. Intern. Med. 2000;14(3):292-297.
. No entanto, como a medição das proteínas induzidas pela ausência da vitamina K não está disponível no mercado e, dada a elevada prevalência de coagulopatias e deficiência de vitamina K na lipidose hepática felina, é aconselhável a suplementação de vitamina K (Tabela 2).