Insuficiência pancreática exócrina em cães
A insuficiência pancreática exócrina é uma doença debilitante, subdiagnosticada em cães.
Número da edição 29.3 Pâncreas exócrino
Publicado 10/11/2021
Disponível em Français , Deutsch , Italiano , Română , Español e English
Apesar de a pancreatite ser uma doença comumente encontrada na clínica geral, o diagnóstico está longe de ser algo simples, conforme descreve Iwan Burgener em um artigo que foca nos prós e contras das opções diagnósticas disponíveis.
Embora a pancreatite canina seja uma doença geralmente encontrada, a fisiopatologia é pouco compreendida, e a etiologia permanece desconhecida na maioria dos casos.
O diagnóstico de pancreatite continua sendo um grande desafio para o clínico, em função de uma série de fatores; o exame histopatológico ainda é considerado o teste com padrão-ouro, mas raramente é utilizado.
A síntese e o armazenamento de enzimas digestivas no pâncreas acarretam o risco de autodigestão e subsequente inflamação; i. e., pancreatite. Estritamente falando, o termo pancreatite refere-se à inflamação (i. e., infiltração de células inflamatórias) do pâncreas exócrino, mas também costuma ser expandido de modo a incluir doenças pancreáticas exócrinas caracterizadas principalmente por necrose (pancreatite necrosante) ou alterações estruturais irreversíveis, como fibrose (pancreatite crônica), algumas vezes apenas com um componente inflamatório mínimo 1.
O pâncreas exócrino possui vários mecanismos para prevenir a autodigestão (p. ex., precursores enzimáticos, armazenamento de enzimas em grânulos separados dos lisossomos, altos níveis de pH local, boa irrigação sanguínea, etc.). A pancreatite se desenvolverá apenas se todos esses mecanismos protetores forem violados ao mesmo tempo. A dose em si evolui em dois estágios. No primeiro estágio, a enzima tripsina (ativada a partir do tripsinogênio) é liberada, ativando outras enzimas digestivas. Isso leva a alterações locais, como edema, hemorragia e infiltração de células inflamatórias, além de necrose das células acinares e da gordura peripancreática. No segundo estágio, o processo inflamatório existente avança com o recrutamento de células inflamatórias e a liberação de citocinas, o que pode levar a distúrbios sistêmicos e, por fim, ao óbito.
A pancreatite é classificada em formas aguda e crônica, dependendo da ausência (forma aguda) ou presença (forma crônica) de alterações histopatológicas permanentes. Ao exame histopatológico, a pancreatite aguda consiste em uma inflamação neutrofílica associada à formação de edema intersticial e necrose da gordura mesentérica (Figura 1). Na pancreatite crônica, a fibrose é mais proeminente do que as alterações inflamatórias, com um aumento gradativo da degeneração cística do tecido conforme a fibrose avança.
A pancreatite é o distúrbio mais comum do pâncreas exócrino em cães. Apesar disso, a fisiopatologia é pouco compreendida, e sua etiologia permanece desconhecida na maioria dos casos. É mais provável que os cães da raça Schnauzer miniatura apresentem pancreatite, em comparação com outras raças2, e isso provavelmente se deve a mutações no gene SPINK , responsável pela codificação e síntese de inibidores específicos da tripsina pancreática, como os inibidores serinoproteases tipo Kazal 1. Outras raças com um risco potencialmente elevado de pancreatite incluem Cavalier King Charles Spaniel, Cocker Spaniel, Boxer, Border Collie e Yorkshire Terrier 3. . Os fatores de risco de pancreatite englobam ingestão de alimentos gordurosos, traumatismos, isquemia local, endocrinopatias (hiperadrenocorticismo, diabetes mellitus, e hipotireoidismo) e uso de vários fármacos. Cálcio, glicocorticoides, L-asparaginase, azatioprina, brometo de potássio, zinco e antimoniato de meglumina (Glucantime®) foram identificados como fatores de risco em cães, mas a relação causal, na verdade, não é comprovada para todos esses medicamentos. Ao fazer comparações a partir da literatura humana especializada, também é prudente considerar outros fármacos, como: anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), diuréticos tiazídicos, furosemida, alcaloides da vinca, inibidores da colinesterase, estrogênios e salicilatos, como possíveis indutores de pancreatite. Também foi demonstrado que a hiperlipidemia e, particularmente a hipertrigliceridemia, provocam pancreatite em cães. Por outro lado, infecções bacterianas e fúngicas raramente são constatadas como fatores desencadeantes ou gatilhos, embora a Babesia canis seja conhecida como um agente causal4.
O diagnóstico antemortem de pancreatite continua sendo um grande desafio para o clínico. Isso acontece por diversos motivos, incluindo: (a) etiologia indefinida, (b) sinais clínicos geralmente leves e inespecíficos, (c) baixa sensibilidade e especificidade da maioria dos achados nos testes clinicopatológicos e nas técnicas de imagem, (d) presença frequente de distúrbios concomitantes, e (e) dificuldade na obtenção ou interpretação de amostras de biopsia. Embora o exame histopatológico ainda seja considerado o padrão-ouro no diagnóstico de pancreatite, raramente ele é utilizado.
A pancreatite apresenta diferenças clinicamente pronunciadas, variando desde uma condição subclínica até falência múltipla de órgãos. O quadro clínico geralmente corresponde ao quadro de abdome agudo, sendo comuns os sinais de anorexia, vômitos, dor abdominal e desidratação, com ou sem diarreia. Em casos de pancreatite grave, podem ser observadas complicações sistêmicas importantes (p. ex., coagulação intravascular disseminada [CID], tromboembolia pulmonar, choque cardiovascular e falência múltipla de órgãos). A forma crônica da pancreatite (em que os sinais clínicos são ainda mais inespecíficos do que na forma aguda) é menos comum em cães do que em gatos.
As radiografias abdominais podem revelar perda de detalhe na porção cranial do abdome e/ou efeito expansivo tipo massa. No entanto, o exame radiográfico é insensível e inespecífico para o diagnóstico de pancreatite, sendo recomendado principalmente para descartar doenças concomitantes, como obstrução intestinal e corpos estranhos. A ultrassonografia abdominal geralmente é considerada a modalidade de imagem de escolha para o diagnóstico de pancreatite, além de ser útil para o diagnóstico ou a exclusão de outras doenças que causam sinais clínicos semelhantes. Existe apenas um número limitado de estudos que avaliaram sistematicamente o desempenho da ultrassonografia abdominal para o diagnóstico de pancreatite canina, revelando sensibilidades de 69% no mínimo, e a maioria desses estudos tem mais de uma década5. Desde então, houve avanços significativos na qualidade dos equipamentos e na experiência dos radiologistas. É de extrema importância enfatizar o fato de que o desempenho da ultrassonografia abdominal para o diagnóstico de pancreatite depende fortemente da habilidade do ultrassonografista e da qualidade do aparelho utilizado. Os achados ultrassonográficos, como pâncreas hipoecoico, mesentério hiperecoico e efusão abdominal, são relativamente específicos para pancreatite, embora outras lesões pancreáticas (p. ex., neoplasia, nódulos hiperplásicos) possam parecer semelhantes à pancreatite. É importante reconhecer que algumas alterações detectadas durante a ultrassonografia abdominal podem estar relacionadas com a idade, como dilatação do ducto pancreático – um achado que era considerado específico de pancreatite.
A tomografia computadorizada (TC) com contraste é um recurso extremamente valioso para a avaliação de pacientes humanos com suspeita de pancreatite. Até o momento, poucos estudos avaliaram a adequabilidade da TC como ferramenta diagnóstica para a pancreatite canina, mas um relato recém-publicado confirmou que a angiografia por TC era melhor do que o ultrassom na identificação de cães com pancreatite aguda grave e trombose venosa portal 5.A ressonância magnética (RM) e a colangiopancreatografia por RM estão se tornando a modalidade de imagem de escolha em seres humanos para os tratos pancreático e biliar, mas até o momento há apenas uma experiência limitada dessas técnicas em cães.
Os testes de hematologia e bioquímica não são específicos para pancreatite e não parecem fazer uma distinção significativa entre os pacientes com as formas aguda e crônica dessa doença. Os achados anormais mais comuns na bioquímica sérica incluem elevação da fosfatase alcalina e da alanina aminotransferase, bem como azotemia (principalmente pré-renal), icterícia (sobretudo pós-hepática) e hipercolesterolemia; tipicamente, entre 50-70% desses parâmetros estarão fora do intervalo normal de referência. As atividades séricas da lipase e amilase são inespecíficas ao pâncreas e, particularmente, não são sensíveis para pancreatite, mas podem ser utilizadas para o diagnóstico em uma emergência se o quadro clínico se enquadrar ao caso. Por fim, uma concentração aumentada da imunorreatividade semelhante à da tripsina sérica é bastante específica para pancreatite, mas tem uma sensibilidade de apenas cerca de 30-50%.
Iwan A. Burgener
Os níveis da lipase podem ser determinados pela medição da atividade dessa enzima ou por meio de ensaios imunológicos. Os ensaios enzimáticos medem (como o próprio nome diz) a atividade das enzimas, enquanto os ensaios imunológicos detectam certas partes da proteína/isoenzima através de anticorpos 6 7. A maioria dos ensaios enzimáticos utiliza 1,2-diglicerídeo como substrato, ao passo que alguns usam trioleína e outros ainda empregam DGGR [do inglês 1,2-o-dilauryl-rac-glycero-3-glutaric acid-(6′-methylresorufin) ester , éster de 1,2-o-dilauril-rac-glicero-3-ácido glutárico-(6'-metilresorufina)].
Recentemente, alguns relatos sugeriram que os ensaios à base de DGGR sejam mais específicos para a mensuração da lipase pancreática no soro canino do que outros ensaios da atividade total da lipase8 9. Contudo, outro estudo relatou que a especificidade do ensaio à base de DGGR para a medição da atividade sérica da lipase em cães era menor que a dos ensaios mais tradicionais à base de 1,2-diglicerídeo10. Se o DGGR fosse um substrato específico para lipase pancreática, os cães com insuficiência pancreática exócrina deveriam ter uma atividade sérica insignificante da lipase quando mensurada com um ensaio à base desse substrato. De fato, foi demonstrado que a atividade sérica da lipase é significativamente menor em cães com insuficiência pancreática exócrina do que em cães saudáveis de grupo-controle11. Todavia, 33 de 48 (69%) cães com insuficiência pancreática exócrina nesse estudo tinham atividades séricas da lipase dentro do intervalo de referência, sugerindo que o DGGR não seja exclusivamente hidrolisado pela lipase pancreática; portanto, os ensaios à base de DGGR não são específicos para essa enzima. Isso sugeriria que o DGGR também atue como substrato para lipases não pancreáticas; no entanto, ainda não se sabe quais as outras lipases detectadas pelo ensaio à base de DGGR.
Diante do exposto, apenas o uso do DGGR como substrato muito provavelmente não levará a resultados semelhantes em diferentes ensaios à base desse substrato. Entretanto, há relatos de sensibilidade e especificidade moderadas a boas em dois ensaios de lipase à base de DGGR. Um ensaio de lipase à base de DGGR1 emonstrou ter uma elevada concordância com o teste mais consagrado para a imunorreatividade da lipase pancreática (Spec cPL®, Idexx, Estados Unidos) em cães com suspeita de pancreatite8, mas a concordância entre a ultrassonografia e os resultados de ambos os ensaios de lipase era apenas razoável. Outro ensaio de lipase à base de DGGR2demonstrou um excelente nível em termos de precisão, reprodutibilidade e linearidade, além de uma concordância considerável entre o ensaio de lipase à base de DGGR e o Spec cPL, com sensibilidade e especificidade semelhantes para o diagnóstico de pancreatite aguda e crônica, ainda que a população do estudo fosse muito pequena9.
1Lipase colorimétrica para Roche Cobas Integra 800, Roche Diagnostics, Rotkreuz, Suíça.
Em contraste com a atividade da lipase no soro, a imunorreatividade da lipase pancreática mede apenas as lipases sintetizadas pelas células acinares do pâncreas exócrino. Os anticorpos usados no teste Spec cPL2são específicos e não apresentam reatividade cruzada com outras lipases6 7 12. A imunorreatividade da lipase pancreática sérica é altamente específica para a função do pâncreas exócrino e demonstra alta sensibilidade para pancreatite moderada a grave 13. Além disso, o teste Spec cPL demonstrou as melhores características de desempenho geral (sensibilidade e especificidade), em comparação com amilase, lipase e imunorreatividade semelhante à da tripsina para o diagnóstico de lesões histopatológicas de pancreatite em cães13.
Nos últimos anos, um teste para uso ao lado da gaiola no paciente também se tornou disponível (SNAP cPL, Idexx, Estados Unidos). Esse teste é semiquantitativo e deve ser utilizado para descartar pancreatite com um resultado negativo. Um resultado positivo nesse teste feito ao lado da gaiola deve ser acompanhado pela determinação da concentração de imunorreatividade da lipase pancreática para confirmar o diagnóstico e pela subsequente mensuração de acompanhamento. O resultado do teste SNAP cPL parece ter uma boa correlação com o teste Spec cPL – ambos os testes foram desenvolvidos pelo mesmo laboratório e empregam os mesmos anticorpos de diagnóstico14 (Figura 2). Outro estudo também demonstrou uma alta correlação entre os dois testes, sugerindo que o teste realizado ao lado da gaiola seja o único teste mais sensível que pode ser feito dentro da própria clínica15.
Com vistas para o futuro, novos ensaios imunológicos comerciais de lipase estão se tornando disponíveis, mas alguns deles ainda não são validados na literatura especializada. Por exemplo, em um estudo recente, um ensaio recém-lançado para a mensuração da lipase pancreática canina demonstrou uma tendenciosidade ( bias ) significativa e baixa concordância com interpretações clínicas parcialmente diferentes, quando comparado com o ensaio validado16. Portanto, há necessidade de mais pesquisas antes que os ensaios recém-lançados possam ser recomendados para uso clínico.
2. DiasSys Lipase DC FS, Holzheim, Alemanha.
Como atualmente não existe nenhum exame com padrão-ouro para o diagnóstico antemortem de pancreatite em cães, a obtenção de histórico clínico e exame físico completos, combinados com a mensuração da imunorreatividade da lipase pancreática e a avaliação ultrassonográfica do pâncreas, é a melhor abordagem para o diagnóstico preciso (exato) e não invasivo de pancreatite. O ideal é que o diagnóstico seja confirmado através dos exames de citologia e/ou histopatologia pancreáticas (guiados por ultrassom ou, então, realizados por laparoscopia ou laparotomia), mas isso raramente é feito. A ultrassonografia abdominal é um método útil, mas requer experiência; todavia, o encontro de achados normais não exclui o quadro de pancreatite.
A insuficiência pancreática exócrina é uma doença debilitante, subdiagnosticada em cães.
O diabetes mellitus pode ter efeitos de grande alcance no metabolismo do corpo.
A obtenção de imagens do fígado e pâncreas pode fornecer informações valiosas ao se investigar possíveis doenças ligadas a esses órgãos.
Um gato ictérico não é um diagnóstico