Revista médica e científica internacional dedicada a profissionais e estudantes de medicina veterinária.
Veterinary Focus

Número da edição 31.3 Nutrição

Perguntas e respostas sobre nutrição de gatos

Publicado 06/02/2023

Escrito por Ana Luísa Lourenço

Disponível em Français , Deutsch , Italiano , Español e English

A espécie felina é única em muitos aspectos, especialmente no que diz respeito às suas necessidades nutricionais, como ilustrado neste artigo de perguntas e respostas de Ana Lourenço.

A maioria dos gatos gosta de beber leite – mas isso não significa que esse alimento seja bom para eles, especialmente se for dado em excesso

Pontos-chave

Os gatos são carnívoros obrigatórios ou estritos e, embora seja possível do ponto de vista teórico, é extremamente difícil formular uma dieta de manutenção balanceada para esses pets, totalmente isenta de produtos de origem animal.


É comum ouvir dizer que os gatos não devem receber leite por conta de uma “intolerância à lactose”. Isso não significa, no entanto, que o leite seja proibido em todos os momentos.


Apesar de não serem contraindicados para gatos, os carboidratos devem ser fornecidos na alimentação de uma forma que sejam facilmente digeríveis.


Os gatos têm uma capacidade extraordinária de concentrar a urina quando a água de bebida é escassa, mas, para um estado de saúde ideal, eles devem ser incentivados a beber à vontade, sempre que possível.


Introdução

Os gatos foram domesticados pela primeira vez por humanos há cerca de 10.000 anos e, desde então, tornaram-se um dos nossos animais de companhia mais populares. Naturalmente, isso significa que queremos lhes oferecer os melhores cuidados possíveis e, com isso em mente, muito esforço foi feito nas últimas décadas em termos de pesquisas voltadas para a espécie felina, em particular em suas necessidades nutricionais. Aos poucos, tornou-se evidente que o gato é um animal com muitas peculiaridades, inclusive do ponto de vista alimentar, e este artigo abordará as implicações práticas de algumas delas.

Pergunta: Um gato pode ser alimentado com uma dieta sem ingredientes de origem animal?

Resposta: Os gatos são frequentemente referidos como carnívoros obrigatórios ou estritos; na natureza, eles consomem alimentos de origem animal em quase sua totalidade, são anatomicamente projetados para caçar e ingerir presas, e seu metabolismo é adaptado à sua dieta natural  1 (Figura 1). Os gatos precisam de diferentes nutrientes (ou seja, têm várias necessidades nutricionais), e alguns deles devem ser supridos por meio da alimentação, pois esses animais não conseguem sintetizá-los em quantidades suficientes por suas vias metabólicas intrínsecas. Pesquisas revelam que existem pelo menos 45 nutrientes essenciais para a saúde do gato 2, e, por causa de suas peculiaridades metabólicas, suas necessidades de proteínas, arginina, metionina, cisteína, taurina, ácido araquidônico, vitamina A, vitamina D, niacina e piridoxina são maiores, quando comparados aos onívoros 1,2.

Os gatos evoluíram ao longo de muitos séculos para caçar

Figura 1. Os gatos evoluíram ao longo de muitos séculos para caçar, capturar e comer presas, e seu metabolismo é baseado no consumo de alimentos de origem animal.
Créditos: Shutterstock

Alguns dos nutrientes essenciais são obtidos principalmente de ingredientes de origem animal; estes incluem vários aminoácidos (lisina, metionina, cisteína e taurina), algumas vitaminas (A, D e B12) e alguns ácidos graxos (ácidos araquidônico, eicosapentaenoico e docosaexaenoico). Pode ser difícil obtê-los de outras fontes que não animais; portanto, para formular uma dieta felina sem ingredientes de origem animal, esses nutrientes devem ser fornecidos por meios alternativos, seja incorporando produtos sintetizados quimicamente ou ingredientes de fontes não animais específicas. No entanto, essas alternativas não são necessariamente simples, e seu uso pode representar outros desafios. Em primeiro lugar, não basta saber se determinado produto ou ingrediente contém o nutriente desejado; é essencial conhecer o nível ou a quantidade real do nutriente que ele contém. Isso porque a concentração desse nutriente pode ser inferior àquela encontrada em um ingrediente de origem animal, ou esse nutriente pode ser menos ativo (por exemplo, pode conter vitamina D2, em vez de D3); por essa razão, a biodisponibilidade (ou seja, a quantidade de nutriente que, uma vez ingerido, permanece disponível para o metabolismo ou o armazenamento no corpo) precisa ser quantificada.

Em segundo lugar, alguns ingredientes de origem vegetal ou derivados de fontes não animais também podem influenciar negativamente a dieta do gato; eles podem alterar a digestibilidade e a biodisponibilidade geral de seus nutrientes – ao afetar, por exemplo, o conteúdo e a estrutura de carboidratos – e podem reduzir a palatabilidade geral do alimento.

E, em terceiro lugar, também devem ser avaliados os possíveis riscos dessas dietas quanto ao seu potencial impacto em doenças comuns ou frequentes no gato – como os efeitos sobre o pH urinário e, com isso, a possibilidade de predispor o animal à formação cálculos urinários (i. e., urolitíase). Em suma, há desafios consideráveis na elaboração de uma dieta sem ingredientes de origem animal para gatos, não só para ela ser completa e balanceada quando submetida à análise química, mas também para ser comprovadamente adequada como alimento de manutenção a longo prazo. Até onde se saiba, os alimentos “vegetarianos” ou “veganos” disponíveis atualmente no mercado para gatos não possuem todas essas informações, e as pesquisas realizadas até o momento mostram que eles muitas vezes não atendem aos níveis recomendados de nutrientes essenciais 3,4,5. Em um estudo, sugeriu-se que, em alguns casos, a saúde de gatos não seja afetada quando alimentados com uma dieta sem ingredientes de origem animal 3mas não ficou claro se esses gatos tinham acesso a ambientes externos (i. e., ar livre) onde poderiam ter caçado – além disso, o período de avaliação pode não ter sido longo o suficiente para que os animais apresentassem sinais clínicos de deficiências nutricionais.

A autora desconhece a existência de qualquer empresa multinacional de petfood de grande porte que atualmente produza uma dieta felina sem ingredientes de origem animal. Esse fato, por si só, é algo significativo a ser considerado. Como essas empresas possuem um profundo conhecimento, bem como os recursos financeiros necessários, para pesquisar e produzir esse tipo de dieta e, considerando que já existe um mercado pronto com demanda de alguns tutores de pets por esse tipo de alimento, pode-se afirmar que, pelo menos por enquanto, tais alimentos representam um risco desnecessariamente alto para os gatos. Décadas de pesquisa revelaram um grande volume de informações surpreendentes e inesperadas sobre nutrição felina – e ainda estamos aprendendo – portanto, com base nisso, todas as fórmulas de alimentos para gatos devem ter o respaldo de fortes evidências científicas para serem o mais seguras possível. Então, chegamos à conclusão de que, pelo menos por enquanto, os gatos devem ser alimentados com uma dieta que inclua ingredientes de origem animal (ou seja, à base de carne), pois as alternativas aumentam a possibilidade real do fornecimento de uma nutrição abaixo do ideal a longo prazo.

Ana Luísa Lourenço

Algumas fontes alternativas de origem vegetal e não animal também podem ter um impacto negativo na dieta, afetando a digestibilidade e a biodisponibilidade dos nutrientes e reduzindo a palatabilidade do alimento

Ana Luísa Lourenço

Pergunta: A doença cardíaca em gatos está ligada à dieta?

Resposta: A resposta mais simples para isso é: “em alguns casos, possivelmente”. No final da década de 1980, a taurina foi identificada como um nutriente-chave que poderia reduzir a prevalência da miocardiopatia dilatada em gatos 6. O mecanismo pelo qual baixos níveis de taurina no músculo cardíaco resultam em miocardiopatia dilatada e insuficiência cardíaca ainda não é totalmente compreendido, embora haja hipóteses de que isso seja atribuído a distúrbios no metabolismo de cálcio e energia do miocárdio 7,8. A taurina é um ácido β-aminossulfônico não proteico, encontrado em grandes quantidades nas presas capturadas pelo gato na natureza. Em contraste com a maioria dos mamíferos, os gatos apresentam baixas concentrações de cisteína dioxigenase e cisteína ácido sulfínico descarboxilase, enzimas-chave nas vias metabólicas para a síntese de taurina 9Essa idiossincrasia (i. e., peculiaridade) significa que os gatos são incapazes de sintetizar a taurina de forma eficiente a partir dos aminoácidos metionina e cisteína e, portanto, dependem da alimentação como substrato metabólico para obter o nível de taurina de que necessitam.

Uma vez que a taurina foi reconhecida como um nutriente essencial, os fabricantes começaram a incorporá-la em alimentos comerciais para pets, e o que antes era uma causa frequente de miocardiopatia felina se tornou uma ocorrência rara. Hoje em dia, a maioria dos casos é identificada em gatos alimentados com dietas caseiras, mas cabe ressaltar que o gato não é a única espécie suscetível. Em uma revisão recente da Food and Drug Administration (FDA) nos EUA, foi apontada uma possível ligação entre o consumo de certas dietas e o desenvolvimento de miocardiopatia dilatada, e a maioria dos casos relatados recentemente ocorreu em cães, embora um pequeno número de gatos também tenha sido acometido 10Apesar de vários fatores ainda não terem sido esclarecidos, as pesquisas têm se concentrado na alimentação dos animais acometidos e, mais especificamente, na suspeita de que os alimentos apresentavam baixos níveis de biodisponibilidade de taurina. É importante notar que existem diversos fatores envolvidos na etiologia da miocardiopatia dilatada; portanto, é necessária uma coleta de dados mais robusta para que qualquer conclusão possa ser tirada a partir desta revisão.

Se a deficiência de taurina for identificada como a provável causa em um caso de miocardiopatia dilatada felina e os testes demonstrarem baixos níveis desse aminoácido no plasma e no sangue total (Figura 2), a suplementação da dieta com taurina geralmente resulta em uma melhora imediata da função cardíaca e – supondo que o gato sobreviva ao período crítico imediato – a condição deve se resolver dentro de 6 meses. Portanto, embora seja verdade que determinadas dietas possam causar doenças cardíacas em gatos, é pouco provável que um alimento comercial bem formulado esteja associado a uma maior predisposição à miocardiopatia.

É aconselhável medir os níveis plasmáticos de taurina em caso de suspeita de miocardiopatia dilatada em um gato

Figura 2. É aconselhável medir os níveis plasmáticos de taurina em caso de suspeita de miocardiopatia dilatada em um gato.
Créditos: Shutterstock

Pergunta: Deve ser oferecido leite ao gato?

Resposta: A maioria dos gatos gosta de beber leite, mas isso não significa necessariamente que esse alimento seja saudável para eles (Figura 3). Talvez a pergunta mais correta seja “qual a quantidade de leite adequada para um gato – e quais problemas podem estar ligados ao seu consumo?” É verdade que os gatos, assim como todos os outros mamíferos, sobrevivem na natureza, durante as primeiras semanas de vida, alimentando-se exclusivamente de leite e, mesmo depois de começarem a ingerir alimentos sólidos, eles continuam a depender parcialmente do leite materno até o desmame completo (Figura 4). A atividade da lactase no intestino de um gato diminui com a idade e, com isso, a capacidade de digerir a lactose, o principal açúcar presente no leite. Se a quantidade de lactose ingerida por um gato ultrapassar sua capacidade de digeri-la, a lactose não digerida sofrerá fermentação no trato gastrointestinal, levando a sinais clínicos, como vômitos e diarreia. A capacidade de um gato adulto de digerir a lactose é, portanto, menor que a de um filhote, embora estudos tenham demonstrado que um gato adulto pode tolerar (pelo menos) 1,3 g de lactose por kg de peso corporal diariamente 11. Vale observar que a concentração de lactose no leite é bastante constante, tanto entre diferentes espécies (por exemplo, leite de vaca, ovelha ou cabra) como em diferentes tipos de leite (ou seja, desnatado, semidesnatado ou integral), com uma média máxima de 5% 12. Isso significa que um gato pode tolerar até 25 mL de leite por kg de peso corporal por dia; assim, se um gato de 4 kg beber menos de 100 mL de leite por dia, é pouco provável que ele desenvolva quaisquer sinais clínicos de intolerância à lactose. Isso não exclui o fato de que alguns animais podem ter uma capacidade digestiva particularmente baixa para lactose; portanto, em alguns casos, os sinais clínicos podem se desenvolver mesmo se um gato consumir uma pequena quantidade de leite.

A maioria dos gatos gosta de beber leite

Figura 3. A maioria dos gatos gosta de beber leite – mas isso não significa que esse alimento seja bom para eles, especialmente se for dado em excesso.
Créditos: Shutterstock

No entanto, além da questão de intolerância à lactose, se o gato toma leite regularmente, é importante que também sejam levados em consideração o perfil nutricional geral da sua alimentação e a quantidade de energia total ingerida. O leite da gata é um alimento muito completo para os seus filhotes, contendo todos os nutrientes essenciais para eles, mas não constitui uma dieta balanceada para um gato após o desmame. O leite tem uma elevada densidade energética e, se oferecido a um gato com regularidade, a sua contribuição deverá ser considerada como parte de uma dieta completa e equilibrada ou como um petisco extra. Nesse caso, a quantidade fornecida não deve representar mais de 10% do conteúdo energético de seu alimento básico. Considerando que o leite de vaca integral tem uma densidade energética de 69 kcal/100 mL (ou cerca de metade disso para o leite desnatado) 12 e que um gato castrado de 4 kg tem uma necessidade energética média de 130-190 kcal/dia (52-75 kcal/kg0,67), a quantidade diária de leite a ser oferecida como petisco seria de 20-30 mL ou aproximadamente o dobro dessa quantidade caso se utilize o leite desnatado. Nesse volume de leite, a ingestão de lactose encontra-se bem abaixo do limite máximo.

Por fim, outro aspecto a ser considerado é a possibilidade de alguns gatos serem alérgicos à caseína. Embora a literatura especializada não relate isso como prevalente em gatos 13obviamente esses animais alérgicos não devem ser alimentados com leite.

Em suma, pode-se dizer que o leite com moderação é aceitável para a maioria dos gatos, mas uma quantidade excessiva pode ser prejudicial a longo prazo.

O leite de uma gata fornece uma nutrição completa aos seus filhotes nas primeiras semanas de vida

Figura 4. O leite de uma gata fornece uma nutrição completa aos seus filhotes nas primeiras semanas de vida.
Créditos: Shutterstock

Pergunta: Um gato consegue digerir e metabolizar carboidratos?

Resposta: Se tiverem a possibilidade de escolha, os gatos domésticos terão a preferência por dietas com baixo teor de carboidratos 14Se tiverem a possibilidade de escolha, os gatos domésticos terão a preferência por dietas com baixo teor de carboidratos 15. Esses fatos levantam a suposição de que o sistema digestivo e o metabolismo do gato não consigam lidar com os carboidratos. Na verdade, a glicose (um dos carboidratos mais simples) é tão essencial para os gatos carnívoros quanto para os animais onívoros ou herbívoros. A glicose é a principal, ou a única, fonte de energia para o cérebro, as hemácias, os leucócitos e algumas células específicas da medula renal, bem como os testículos e olhos 16. A glicose também é necessária para a síntese de alguns aminoácidos não essenciais, vitamina C e ácidos nucleicos e, em gatas lactantes, para a produção de lactose 16No entanto, os carboidratos não são nutrientes obrigatórios na dieta do gato, pois a glicose pode ser sintetizada a partir de outras fontes.

Após a administração intravenosa de glicose, as concentrações desse açúcar no sangue (glicemia) retornam rapidamente ao seu nível basal no gato, e os níveis sanguíneos de glicose em jejum nessa espécie são muito semelhantes aos de outros mamíferos com necessidades nutricionais diferentes 16, então, fica claro que os gatos conseguem metabolizar carboidratos. Apesar de terem evoluído de modo a ter uma capacidade digestiva mais limitada para carboidratos complexos do que outras espécies domesticadas (por exemplo, cães ou porcos 17), os gatos são capazes digerir e absorver os carboidratos de forma eficiente, desde que sejam devidamente processados (i. e., moídos e/ou cozidos) e não sejam ingeridos em quantidades excessivas 18. Portanto, a questão não é tanto sobre se “os gatos devem ser alimentados com carboidratos?” mas sim “o que precisa ser considerado ao incluir carboidratos na dieta de um gato?” – já que esses animais não devem ser alimentados com carboidratos crus ou em quantidades que excedam sua capacidade digestiva.

Pergunta: Um gato pode se tornar diabético se for alimentado com uma dieta rica em carboidratos?

Resposta: O diabetes mellitus é uma doença relativamente comum em gatos; segundo alguns estudos, a prevalência é de até 1,25% 16, e os tutores de gatos diabéticos podem se perguntar se os carboidratos da dieta de seus pets contribuíram para o desenvolvimento da doença (Figura 5). Em primeiro lugar, vale a pena considerar por que a maioria dos alimentos comerciais para gatos contém níveis relativamente altos de carboidratos, já que a alimentação do gato na natureza costuma ser muito pobre em carboidratos (cerca de 2% com base na energia metabolizável [EM]) 14). Isso não se deve simplesmente ao fato de essa classe de nutrientes ser mais barata ou mais sustentável do que as proteínas ou gorduras, mas sim porque os carboidratos constituem um requisito do ponto de vista tecnológico para a fabricação de alimentos secos. Além disso, os carboidratos são incorporados aos alimentos, porque possuem várias propriedades benéficas: são amplamente digeridos e absorvidos no trato gastrointestinal, podem substituir parcialmente as gorduras e proteínas na dieta como fonte de energia e ainda têm um efeito poupador sobre o metabolismo de aminoácidos.

Os tutores de gatos podem se perguntar se o excesso de carboidratos na dieta contribui para o desenvolvimento de diabetes

Figura 5. Os tutores de gatos podem se perguntar se o excesso de carboidratos na dieta contribui para o desenvolvimento de diabetes, mas não há evidências suficientes para apoiar essa teoria.
Créditos: Shutterstock

Como o diabetes felino é um distúrbio endócrino atribuído principalmente a uma intolerância à glicose por insulinorresistência, pode ser difícil não supor que o conteúdo de carboidratos da dieta de um gato seja a causa da doença, mas as evidências para apoiar essa hipótese são muito escassas 16. Existem alguns dados que sugerem que dietas com baixo teor de carboidratos possam resultar em um melhor controle glicêmico e alcançar a remissão clínica do diabetes felino 19e, de fato, esse tipo de dieta pode ser benéfico, mas isso não significa necessariamente que os carboidratos sejam a causa da doença.

Após uma refeição, os níveis glicêmicos (i. e., concentração de glicose no sangue) aumentam e, em consequência disso, há uma liberação fisiológica de insulina pelo pâncreas para neutralizar esse efeito. Se o alto teor de carboidratos na dieta estivesse relacionado com o diabetes, seria de se esperar que esse mecanismo estivesse alterado de alguma forma, resultando em menor tolerância à glicose e/ou menor sensibilidade à insulina. Em alguns estudos em gatos, constataram-se alterações na tolerância à glicose com dietas ricas em carboidratos/pobres em proteínas, quando comparadas com alimentos ricos em proteínas/pobres em carboidratos, mas isso não foi confirmado em outros estudos 20. Pelo menos em um estudo, não foi estabelecida nenhuma relação entre o teor de carboidratos da dieta e a sensibilidade à insulina 21e também é verdade que até os alimentos com altos níveis de amido não costumam causar hiperglicemia e glicosúria em gatos.

Além disso, a teoria de que o aumento da glicemia secundário à ingestão de alimentos ricos em carboidratos em gatos é responsável pela secreção excessiva de insulina pelas células β pancreáticas (o que poderia levar à destruição dessas células e subsequente diabetes mellitus) foi refutada por um estudo que demonstrou que as células β pancreáticas felinas são mais responsivas aos aminoácidos e menos responsivas à glicose do que as células β de espécies onívoras 22. Isso sugere que algo a mais do que simplesmente o conteúdo de carboidratos da dieta esteja envolvido na etiologia do diabetes felino. Não obstante, estudos demonstraram que a taxa de depuração (clearance) de glicose no gato é menor do que no cão ou humano e que um estado de hiperglicemia crônica (30 mmol/L em um período de 10 dias, alcançado por infusão de glicose) pode causar disfunção e perda de células β, prejudicando a secreção de insulina 16. No entanto, é importante notar que esse cenário não mimetiza a resposta fisiológica do gato à ingestão de alimentos; portanto, para concluir, atualmente não há evidências sólidas para apoiar a hipótese de que o teor de carboidratos de uma dieta possa causar diabetes no gato. A obesidade, causada por um estilo de vida sedentário e pela ingestão calórica excessiva, bem como o avanço da idade, continuam sendo os principais fatores de risco para o diabetes mellitus 16.

Pergunta: Um gato pode ser saudável sem beber água?

Resposta: Os gatos não conseguem sobreviver sem água, mas satisfazem suas necessidades de líquidos tanto por meios exógenos (i. e., provenientes da água de bebida e do teor de água dos alimentos) (Figura 6) como por processos endógenos (i. e., a partir da água produzida pela oxidação de carboidratos, gorduras e proteínas). A água é perdida através da urina e das fezes, bem como por meio de processos de evaporação e, embora vários fatores (incluindo doenças, temperatura e umidade do ambiente) possam aumentar essas perdas, a necessidade média diária de água do gato é de cerca de 50 mL por kg de peso corporal 23.

Embora a maioria dos gatos tenha acesso irrestrito à água

Figura 6. Embora a maioria dos gatos tenha acesso irrestrito à água, muitos deles podem não beber muito.
Créditos: Shutterstock

Se necessário, os gatos têm uma incrível capacidade de concentrar a urina através da reabsorção renal de água. Embora esta seja provavelmente uma adaptação evolutiva valiosa para ajudar na sobrevivência em ambientes áridos, sugere-se que essa capacidade, juntamente com uma baixa ingestão de água, possa contribuir para o desenvolvimento de alguns dos distúrbios do trato urinário que são tão prevalentes nessa espécie 24. Para reduzir esse risco, qualquer medida ou estratégia que estimule um gato a ingerir mais água deve ser incentivada, providenciando, por exemplo, fontes de água ou vasilhas de água extras espalhadas pela casa (Figura 7). Ao mesmo tempo, entretanto, é importante evitar qualquer coisa capaz de perturbar o gato, pois o estresse pode contribuir significativamente para o aparecimento de vários problemas de saúde felina. Os fatores que ajudam a maximizar a ingestão de água de um gato, minimizando qualquer elemento indutor de estresse, precisam ser adaptados a cada animal individualmente 24e a melhor abordagem é simplesmente permitir que o gato decida como, onde e quando beber.

O uso de fontes de água pode ser uma forma de estimular o aumento do consumo de água, sem causar estresse ao gato.

Figura 7. O uso de fontes de água pode ser uma forma de estimular o aumento do consumo de água, sem causar estresse ao gato.
Créditos: Shutterstock

Todavia, a água de bebida não é a única opção disponível; a água contida nos alimentos também é uma boa opção para atender às necessidades de líquidos do gato. Os alimentos constituem uma boa fonte de água para os gatos na natureza, uma vez que as presas capturadas por eles para a sua sobrevivência (pequenos roedores e pássaros) apresentam um teor de água em torno de 70% 14. Oferecer uma dieta com alto conteúdo de água é obviamente um método muito eficaz e livre de estresse, desde que o gato goste desse tipo de alimento. Há muito tempo, foi demonstrado que os gatos podem satisfazer suas necessidades de água apenas com uma dieta à base de carne ou peixe 25. Pesquisas mais recentes demonstraram que a ingestão diária de água dos gatos e o volume de urina produzido por eles são significativamente maiores quando lhes são oferecidos alimentos úmidos (que contêm cerca de 75-80% de água) em vez de alimentos secos (cujo conteúdo de água gira em torno de 8%) 26Portanto, embora qualquer método livre de estresse que incentive o gato a beber água seja bem-vindo, oferecer um alimento com alto teor de umidade pode ser, para muitos gatos, a maneira mais fácil de garantir a ingestão de água suficiente para uma boa homeostase.

Considerações finais

O gato é único em muitos aspectos, e suas necessidades nutricionais e peculiaridades reforçam o ditado de que “um gato não é um cachorro pequeno” – as necessidades nutricionais da espécie felina podem ser bem diferentes daquelas da espécie canina, e sempre vale a pena dedicar um período de tempo significativo de qualquer consulta para abordar as necessidades alimentares do gato. A boa saúde do pet começa com uma boa comunicação no consultório; por isso, é fundamental que o clínico de pequenos animais tenha um excelente conhecimento nutricional para fornecer as melhores orientações aos tutores.

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Ana Luísa Lourenço

Ana Luísa Lourenço

A Dra. Lourenço obteve a licenciatura em Zootecnia e Medicina Veterinária na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), onde ela prosseguiu com as pesquisas para o seu doutorado. Leia mais

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