Insuficiência cardíaca aguda em cães
A insuficiência cardíaca aguda em cães acarreta um sério risco de morte, e otimizar o diagnóstico e o tratamento é fundamental, conforme discutido por Luca Ferasin.
Número da edição 32.3 Outros conteúdos científicos
Publicado 07/08/2023
Disponível em Français , Deutsch , Italiano , Română , Español e English
O traumatismo craniano ou cranioencefálico em pequenos animais pode ser um desafio para qualquer médico-veterinário. Este artigo descreve de forma clara e concisa como lidar com esses casos.
O traumatismo cranioencefálico com disfunção da fisiologia cerebral é uma emergência relativamente comum na clínica de pequenos animais.
O objetivo imediato em casos de lesão cerebral traumática deve ser minimizar rapidamente o risco de dano cerebral secundário por meio de fluidoterapia, analgesia e tratamentos adjuvantes adequados
A reavaliação constante e seriada de pacientes com traumatismo craniano é útil para orientar as estratégias terapêuticas e deve ser implementada como parte dos cuidados contínuos
Pode ser difícil prever o prognóstico desses casos na avaliação inicial, mas mesmo cães com déficits neurológicos persistentes costumam se sair surpreendentemente bem.
O traumatismo cranioencefálico e a lesão cerebral traumática são uma das causas mais importantes de morbidade e mortalidade em cães e gatos. Em um estudo de revisão, conduzido em cães que sofreram uma concussão traumática ou trauma rombo, 25% dos casos apresentaram evidências de lesão cerebral traumática, levando a uma menor taxa de sobrevida 1. As causas de traumatismo cranioencefálico incluem contusão de um veículo em movimento, feridas por mordeduras, quedas, lesões por esmagamento, lesões por projéteis balísticos (por exemplo, armas de fogo) e trauma induzido por seres humanos 2. Em um estudo, a maioria dos traumatismos em cães e gatos foi causada por contusão ou trauma brusco com um veículo e lesões por esmagamento, respectivamente 3. Embora o traumatismo cranioencefálico possa ser autolimitante, ele também pode levar a lesão cerebral traumática significativa, coma e até ao óbito do animal, com uma taxa de mortalidade relatada de 18-24% 4. A princípio, o traumatismo cranioencefálico pode ser preocupante para os tutores de cães e gatos, uma vez que esses proprietários questionam o prognóstico quanto à recuperação; no entanto, esses animais parecem ser bastante resilientes, e muitos se recuperam bem com os devidos cuidados, mesmo após perda substancial de tecido cerebral 5. Este artigo revisa a fisiopatologia, a avaliação do paciente, o diagnóstico e as opções de tratamento para traumatismo cranioencefálico e lesão cerebral traumática em cães.
A cavidade craniana é considerado um espaço fixo e, de acordo com o princípio de Monro-Kellie (Figura 1), o volume intracraniano total (composto por parênquima cerebral, sangue e líquido cefalorraquidiano ou cerebrospinal) deve permanecer constante. O aumento de volume de qualquer um desses componentes, ou a adição de um novo elemento com efeito expansivo tipo massa, provoca uma diminuição compensatória dos demais componentes; essa capacidade compensatória é conhecida como complacência ou distensibilidade intracraniana alterada. A ausência de compensação causará um aumento da pressão intracraniana.
A pressão intracraniana (PIC) é a pressão exercida pelos tecidos e líquidos no crânio. O fluxo sanguíneo cerebral fornece oxigênio e nutrientes para o tecido cerebral e é determinado principalmente pela pressão de perfusão cerebral (PPC). Isso pode ser representado pela equação PPC = PAM – PIC, onde PAM é a pressão arterial média. A pressão motriz do fluxo sanguíneo cerebral (FSC) é a pressão de perfusão cerebral, conforme refletido na equação FSC = PPC/RVC, onde RVC é a resistência vascular cerebral.
Graças aos mecanismos autorreguladores, o fluxo sanguíneo cerebral permanece constante, apesar das mudanças na pressão arterial média (PAM 50-150 mmHg), mediante a regulação do tamanho dos vasos cerebrais. Em condições normais, a complacência ou distensibilidade intracraniana é alta, de tal modo que as alterações do volume intracraniano afetam minimamente a pressão intracraniana. No entanto, em caso de traumatismo cranioencefálico, pode ocorrer aumento da pressão intracraniana e perda da autorregulação, resultando em um fluxo dependente da pressão (ou seja, o fluxo sanguíneo cerebral se torna mais dependente da pressão arterial média). Um aumento significativo da pressão intracraniana pode, em última análise, causar uma diminuição da pressão de perfusão cerebral e do fluxo sanguíneo cerebral, o que, por sua vez, leva à isquemia e morte neuronal 6.
A lesão primária (Tabela 1) refere-se à ruptura física dos tecidos intracranianos que ocorre imediatamente no momento do evento traumático (Figura 2). Pode ser classificada de acordo com a localização, o tipo de lesão, e a extensão (se é focal ou difusa) 7. A lesão primária, uma vez produzida, não pode ser modificada, mas afeta e influencia a lesão secundária, que surge posteriormente em resposta à lesão primária. A lesão secundária implica uma série complexa de eventos biológicos que podem levar à morte neuronal, envolvendo a liberação e o acúmulo de neurotransmissores excitatórios, a produção de edema citotóxico, e a ativação de proteases e mediadores inflamatórios, além de disfunção mitocondrial e produção de espécies reativas de oxigênio (também conhecidas como radicais livres). O parênquima cerebral, rico em lipídios, é particularmente suscetível à peroxidação lipídica 8, o que pode ser exacerbado por hemorragia intracraniana e liberação de íons de ferro. A destruição das células neuronais por meio desses processos leva à ativação das vias do óxido nítrico, com consequente vasodilatação cerebral e alterações do fluxo sanguíneo cerebral e da permeabilidade vascular, o que contribui para a perda da autorregulação.
Tabela 1. Classificação das lesões primárias.
Choque/concussão |
|
Contusão |
|
Hematoma |
|
Laceração |
|
Lesão axonal difusa |
|
Também existem outros fatores intracranianos que podem exacerbar a lesão secundária, como hipertensão intracraniana, acidose láctica, barreira hematoencefálica comprometida, vasospasmo, hemorragia, infecção, efeito expansivo tipo massa, e convulsões (i. e., atividade epiléptica) 9. Fatores sistêmicos podem agravar a lesão secundária através do comprometimento do fluxo sanguíneo cerebral, e incluem hipotensão, hiper ou hipoglicemia, hipertermia, hiper ou hipocapnia, hipóxia e desequilíbrios ácido-básicos ou eletrolíticos.
A combinação de hipertensão e bradicardia em um paciente neurológico é conhecida como reflexo de Cushing e pode indicar hipertensão intracraniana grave. No caso de traumatismo cranioencefálico, a herniação cerebral pode ser iminente; portanto, a identificação precoce e a intervenção imediata são essenciais. O médico-veterinário deve ter em mente que, embora o reflexo de Cushing tenha se mostrado específico para herniação cerebral em cães, sua ausência não permite excluir a hipertensão intracraniana 10. Portanto, é razoável supor que haja hipertensão intracraniana quando os achados clínicos são, em termos gerais, compatíveis com ela.
O exame do paciente deve incluir primeiro uma breve avaliação dos critérios ABC em caso de emergências (vias aéreas, respiração e circulação), seguida de uma subsequente avaliação mais exaustiva e completa. Hipoxemia, ventilação prejudicada e hipotensão contribuem para a lesão cerebral secundária, o que exige identificação e tratamento imediatos. A avaliação respiratória deve incluir, no mínimo, o exame das vias aéreas, a frequência e o esforço respiratório, a saturação de oxigênio (SpO2), e a ultrassonografia do tórax no local de atendimento. A avaliação cardiovascular deve incluir, no mínimo, a cor das mucosas, o tempo de preenchimento capilar, a frequência cardíaca e a pulsação, a qualidade do pulso e o nível sérico de lactato, bem como a palpação das extremidades distais para determinar a temperatura relativa e a pressão arterial. Nos traumatismos cranioencefálicos graves, a alteração da autorregulação cerebral faz com que o fluxo sanguíneo cerebral e a pressão de perfusão cerebral fiquem mais dependentes da PAM; por essa razão, no manejo desses pacientes, é essencial a manutenção da pressão arterial.
O ideal é que o exame neurológico seja realizado antes da administração de analgésicos e, se possível, após a reanimação adequada do paciente. A avaliação deve se concentrar no nível de consciência, na postura e nos reflexos do tronco cerebral do animal. Os cães com traumatismo cranioencefálico e lesão cerebral traumática podem apresentar postura de descerebração (descerebrada) ou descerebelação (descerebelada), embora a postura normal não exclua uma lesão cerebral traumática (Figuras 3 e 4). A postura descerebrada pode ser identificada pela extensão da cabeça e do pescoço (opistótono), bem como das quatro extremidades; a postura descerebelada é caracterizada por opistótono com extensão dos membros anteriores (torácicos) e membros posteriores (pélvicos) normais ou flexionados. Em ambas as situações, o estado mental também costuma ser afetado, pois esses pacientes podem ter um distúrbio intracraniano significativo. A avaliação dos reflexos do tronco cerebral inclui o tamanho da pupila, os reflexos pupilares à luz, e o nistagmo fisiológico (Figura 5). Como o traumatismo cervical pode ocorrer simultaneamente com o traumatismo craniano, também é útil avaliar a função motora e sensorial (i. e., sensório-motora).
A Escala de Coma de Glasgow Modificada foi validada em cães (e gatos) 11 para avaliar a gravidade do comprometimento neurológico (Quadro 1). Essa avaliação ou escala é classificada em três categorias (atividade motora, reflexos do tronco cerebral, e nível de consciência), com escore de 1 a 6 para cada uma. Em um estudo, foi constatado que um escore igual a 8 nessa Escala de Coma de Glasgow Modificada no momento da admissão hospitalar é compatível com 50% de chance de sobrevivência nas primeiras 48 horas de internação 11. Pode ser útil realizar essas medições de forma seriada (por exemplo, a cada 30-60 minutos após a apresentação inicial) para monitorar a resposta ao tratamento. Outras escalas, como o escore do Animal Trauma Triage (Triagem de Trauma Animal, um sistema de triagem para animais que sofreram traumas), também foram validadas.
Quadro 1. Escala de Coma de Glasgow Modificada.
Atividade motora | Pontos |
Marcha e reflexos espinais normais
Hemiparesia, tetraparesia ou rigidez descerebrada Decúbito, rigidez extensora intermitente Decúbito, rigidez extensora constante Decúbito, rigidez extensora constante com opistótono Decúbito, hipotonia muscular, reflexos espinais diminuídos ou ausentes |
6
5
4
3
2
1
|
Reflexos do tronco cerebral | |
Reflexos pupilares à luz e oculocefálicos normais
Reflexos pupilares à luz lentos e oculocefálicos de normais a diminuídos Miose bilateral não responsiva com reflexos oculocefálicos de normais a diminuídos Pupilas puntiformes com reflexos oculocefálicos de diminuídos a ausentes Midríase unilateral não responsiva com reflexos oculocefálicos de diminuídos a ausentes Midríase bilateral não responsiva com reflexos oculocefálicos de diminuídos a ausentes |
6
5
4
3
2
1
|
Nível de consciência | |
Períodos ocasionais de alerta e responsivo ao ambiente
Depressão ou delírio, capaz de responder, mas a resposta pode ser inapropriada Semicomatoso, responsivo a estímulos visuais Semicomatoso, responsivo a estímulos auditivos Semicomatoso, responsivo apenas a estímulos nociceptivos repetidos Coma, irresponsivo a estímulos nociceptivos repetidos |
6
5
4
3
2
1
|
Escore da Escala de Coma de Glasgow Modificada | Prognóstico |
3-8
9-14
15-18
|
Grave
Reservado
Bom
|
O diagnóstico pode envolver a avaliação de imagens extra e intracranianas. As imagens extracranianas incluem radiografias de tórax, abdômen e quaisquer membros afetados para avaliar possíveis comorbidades (por exemplo, fraturas de costelas, contusões pulmonares, pneumotórax, presença de líquido abdominal livre, hérnia diafragmática, luxações, fraturas de ossos longos). A técnica de ultrassonografia no local de atendimento pode ser mais sensível para detectar contusões pulmonares e pequenas quantidades de líquido livre torácico ou abdominal 12. A tomografia computadorizada (TC) de corpo inteiro, se disponível, pode ter a vantagem de fornecer rapidamente uma grande quantidade de informações com sedação e manuseio mínimos do paciente.
A obtenção de imagens intracranianas é justificada em pacientes que não respondem ao tratamento medicamentoso ou que pioram após uma resposta inicial à terapia médica, bem como naqueles que apresentam doença neurológica focal ou assimétrica 13. As radiografias do crânio são pouco sensíveis e não são recomendadas 8. A TC (Figura 6) é preferível à ressonância magnética (RM) em emergências, pois não requer anestesia geral, costuma ser mais rápida para realizar e é mais sensível para detectar fraturas, hemorragias ou edemas agudos 4,8. No entanto, a RM pode ter valor prognóstico e ajudar a prever o desenvolvimento de epilepsia pós-traumática (Figura 7) 14.
A elevação da cabeça em um ângulo inclinado de 15-30° pode ajudar a diminuir a pressão intracraniana (PIC) ao promover a drenagem venosa sem comprometer o fluxo sanguíneo cerebral 15. É recomendável o uso de uma tábua ou prancha rígida para apoiar todo o animal (Figura 8) ou, pelo menos, sua parte superior do ombro, para reduzir ou evitar o risco de compressão ou distorção do pescoço, o que poderia obstruir a drenagem venosa.
O objetivo da administração de oxigênio é manter a normoxemia. A suplementação de oxigênio de rotina deve ser evitada, pois a hiperoxemia pode agravar a lesão de reperfusão. Se a oxigenoterapia for necessária, o oxigênio de fluxo livre pode ser considerado até que o paciente esteja estabilizado. As sondas ou cânulas nasais devem ser usadas com cautela, pois a anatomia normal pode estar modificada por uma fratura e, em circunstâncias extremas, pode haver comunicação com o crânio. A oxigenoterapia de alto fluxo tem a vantagem de proporcionar maior conforto ao paciente ao fornecer oxigênio aquecido e umedecido, mas a irritação nasal pode causar espirros com consequente aumento da pressão intracraniana. As gaiolas de oxigênio podem ser menos estressantes, e algumas permitem o controle das condições ambientais, mas têm a desvantagem de criar uma barreira física entre o paciente e a equipe de emergência, o que pode dificultar os cuidados intensivos e o monitoramento, muitas vezes necessários.
O dióxido de carbono desempenha um papel importante no fluxo sanguíneo cerebral. A hipercapnia causa vasodilatação e aumento da pressão intracraniana, enquanto a hipocapnia provoca vasoconstrição e diminuição da pressão intracraniana. Embora tenha sido recomendada no passado, a hiperventilação pode ser prejudicial; mesmo uma leve hipocapnia (PaCO2 < 34%) pode gerar vasoconstrição excessiva com diminuição do fluxo sanguíneo cerebral, além de isquemia e morte neuronal 16.
A fluidoterapia intravenosa (IV) é um dos pilares do tratamento de choque, mas ainda há certa controvérsia sobre o tipo de solução (fluido) mais adequado para o traumatismo cranioencefálico, e ainda não se chegou a um consenso. O objetivo da fluidoterapia deve ser a resolução da hipovolemia, a prevenção da hipotensão e a manutenção do fluxo sanguíneo cerebral. Os pacientes com traumatismo cranioencefálico geralmente apresentam vários graus de choque hipovolêmico, sendo recomendável a manutenção da pressão arterial sistólica acima de 90 mmHg 4. Em estudo conduzido na medicina humana, observou-se um aumento da mortalidade de 150% em pacientes que tiveram apenas um episódio de hipotensão com pressão arterial sistólica < 90 mmHg 17.
Em virtude da possível falta de integridade da barreira hematoencefálica em pacientes com lesão cerebral traumática, a fluidoterapia pode contribuir para os danos contínuos do parênquima cerebral, associados à formação de edema vasogênico, ao desenvolvimento de edema citotóxico ou ao deslocamento de líquidos. No entanto, é fundamental manter uma pressão de perfusão cerebral adequada, pois a autorregulação costuma estar comprometida e há maior dependência da pressão arterial. O plano de fluidoterapia deve ser escolhido individualmente, supervisionado com frequência e ajustado de acordo com as necessidades de cada paciente.
Uma grande quantidade de água livre intravenosa pode contribuir para o edema cerebral como resultado da perda de junções estreitas entre as células do parênquima cerebral lesado; portanto, uma solução de NaCl a 0,9%, que contém a menor quantidade de água livre, é uma possível opção. Entretanto, em função da elevada quantidade de cloreto e da ausência de tampão, também se trata de uma solução acidificante, que não só pode agravar os distúrbios ácido-básicos preexistentes, mas também é associada à lesão renal aguda 18. Os cristaloides isotônicos tamponados são uma opção razoável e justificável. Independentemente do cristaloide selecionado, o tratamento deve ser direcionado para a correção das anormalidades mencionadas anteriormente (por exemplo, choque). Os autores recomendam administrar 10-20 mL/kg ao longo de 10-15 minutos até fazer efeito.
David Sender
As soluções coloides foram elaboradas para expandir o plasma (e, por isso, são designadas como expansores plasmáticos), pois aumentam a pressão oncótica, com o objetivo de reter o volume dentro do espaço intravascular. Assim, elas podem ser um recurso atrativo para a reanimação do paciente hipovolêmico ou hipotenso com traumatismo cranioencefálico. Existe a preocupação de que as partículas oncóticas possam extravasar para o cérebro traumatizado devido à ruptura da barreira hematoencefálica, mas nenhum estudo veterinário randomizado foi realizado para testar os efeitos dos coloides em casos de traumatismo cranioencefálico. Todavia, em estudos post-hoc de seres humanos com lesão cerebral traumática comparando a reanimação com solução salina versus albumina 19 verificou-se que o risco de morte era significativamente maior quando a albumina era utilizada. Os autores não recomendam o uso de coloides em pacientes com traumatismo cranioencefálico até que estudos definitivos demonstrem um claro benefício dos coloides sobre os cristaloides.
A solução salina hipertônica apresenta algumas características que a tornam uma opção interessante para o tratamento de pacientes com lesão cerebral traumática. Essa solução cria um gradiente osmótico, de tal maneira que a água se desloca dos compartimentos intracelular e intersticial para o compartimento intravascular, aumentando o volume intravascular. Ao atuar dessa forma, também aumenta o débito cardíaco. Além disso, ela provoca uma expansão do volume intravascular maior que o seu próprio volume. Com essas propriedades, essa solução é particularmente eficaz em pacientes hipotensos com lesão cerebral traumática, mas, como qualquer cristaloide, ela se redistribui com rapidez para o espaço intersticial, e suas propriedades de expansão do volume intravenoso duram apenas 45-75 minutos. Outros benefícios da solução salina hipertônica serão abordados mais adiante.
O uso de manitol ou de uma solução salina hipertônica pode ser benéfico em função de suas propriedades hiperosmóticas. O manitol é um diurético osmótico que, além de “varrer” (i. e., eliminar) os radicais livres 13 reduz a viscosidade sanguínea e melhora o fluxo sanguíneo microcirculatório. Como consequência da vasoconstrição das arteríolas piais, o volume sanguíneo cerebral e a pressão intracraniana também diminuem 20,21. A dose recomendada é de 0,5-1,5 g/kg IV durante 15-20 minutos 7,8,21, e pode reduzir a pressão intracraniana por 2-5 horas 21. Por causar diurese, os pacientes devem ter recuperado a volemia e manter a normovolemia antes da administração.
A solução salina hipertônica gera expansão de volume em virtude de seus efeitos osmóticos, mas também apresenta outros benefícios. Dentre eles, destacam-se a redução do edema endotelial e a melhora do fluxo sanguíneo regional; a diminuição da viscosidade sanguínea e o restabelecimento da perfusão por seus efeitos reológicos; a diminuição da excitotoxicidade cerebral ao promover a recaptação de neurotransmissores excitatórios, como o glutamato; e os efeitos imunomoduladores 4,7,13. A solução salina hipertônica pode ser superior ao manitol na redução da pressão intracraniana 7, mas sua administração sempre deve ser acompanhada de cristaloides isotônicos para manter a hidratação adequada, tendo um cuidado especial em casos de disnatremia (i. e., distúrbios eletrolíticos referentes ao sódio). A dose recomendada é de 4 mL/kg de solução salina a 7,5% ou 5,4 mL/kg de solução salina a 3% IV durante 15-20 minutos.
As convulsões podem causar lesões secundárias como resultado do aumento da pressão intracraniana, aumento da demanda de oxigênio no cérebro, e diminuição do fluxo sanguíneo cerebral. A porcentagem de pessoas com lesão cerebral traumática que apresentam convulsões é alta (12%) 20, enquanto em um estudo em cães se observou que 6,8% desenvolveram convulsões pós-traumáticas 22. Embora o uso profilático de agentes antiepilépticos possa ser considerado, sua utilização não pode ser recomendada com base nas evidências. Em caso de emergência, os benzodiazepínicos podem ser utilizados inicialmente, seguidos de tratamento antiepiléptico de manutenção com levetiracetam ou fenobarbital.
Embora os corticosteroides sejam potentes agentes anti-inflamatórios tradicionalmente usados no tratamento de pacientes com traumatismo cranioencefálico, foi demonstrado que eles aumentam o risco de mortalidade entre duas e seis semanas após o trauma em um estudo em larga escala feito em pessoas 23, além disso, a Brain Trauma Foundation (Fundação de Traumatismo Cranioencefálico dos Estados Unidos) não recomenda seu uso 20.
Como a lesão cerebral traumática está associada a uma maior demanda metabólica, a hipotermia pode ajudar a reduzir essa demanda e diminuir o dano cerebral secundário. Atualmente, na medicina humana, os dados sobre o benefício da hipotermia terapêutica por meio do coma induzido por barbitúricos são contraditórios, e não há recomendações a esse respeito 20. Na medicina veterinária, ainda faltam pesquisas e evidências sobre esse assunto. Os autores recomendam o aquecimento passivo de qualquer paciente hipotérmico e o monitoramento da temperatura corporal em todos os pacientes com lesão cerebral traumática para evitar tanto a hipotermia excessiva como a hipertermia.
Kendon Kuo
A importância de fornecer analgesia adequada ao paciente com traumatismo cranioencefálico não pode ser subestimada. Os opioides podem ser os agentes de primeira escolha, pois fornecem boa analgesia e geralmente são seguros do ponto de vista cardiovascular, mas há fortes recomendações de analgesia multimodal quando o paciente estiver suficientemente estabilizado e avaliado.
A lidocaína bloqueia os canais de sódio e pode ser usada como analgésico sistêmico. Além de proporcionar analgesia de leve a moderada, foi demonstrado que a lidocaína promove a depuração ou varredura de radicais livres e a diminuição da peroxidação lipídica 21.
A cetamina é um anestésico dissociativo e um antagonista do receptor N-metil-D-aspartato (NMDA); portanto, ela pode ser particularmente útil em pacientes com lesão cerebral traumática. Embora alguns estudos antigos tenham sugerido que a cetamina possa aumentar a pressão intracraniana, novos dados indicam que, graças às suas propriedades como inibidor da ativação do glutamato, neuroprotetor, inibidor da enzima óxido nítrico sintase e vasoconstritor, ela pode ajudar a melhorar a pressão arterial sistêmica e o fluxo sanguíneo cerebral, além de minimizar a lesão cerebral secundária e diminuir a pressão intracraniana 24.
Os agonistas dos receptores alfa-2, incluindo a dexmedetomidina, são sedativos seguros e confiáveis com leve efeito analgésico. As conclusões dos estudos realizados na medicina humana e dos relatos de casos na medicina veterinária são contraditórias em apoiar ou evitar seu uso em pacientes com lesão cerebral traumática e, até o momento, na medicina veterinária, não se conduziram estudos randomizados e prospectivos em pacientes acometidos por esse tipo de lesão; portanto, até que mais dados estejam disponíveis, esses medicamentos devem ser utilizados com moderação em pacientes com lesão cerebral traumática 4.
Os benzodiazepínicos atuam através da modulação da atividade do ácido gama-aminobutírico (GABA) para proporcionar sedação e ansiólise 21, que – juntamente com suas propriedades anticonvulsivantes e efeitos cardiorrespiratórios mínimos – os tornam uma opção terapêutica interessante.
As fenotiazinas (por exemplo, acepromazina) atuam como antagonistas não específicos dos receptores alfa-1 e alfa-2 para fornecer sedação e ansiólise 21, e, embora inicialmente se acreditasse que elas reduziam o limiar convulsivo em pacientes epilépticos, esse efeito voltou a ser investigado 21. Em baixas doses, as fenotiazinas parecem ser relativamente seguras do ponto de vista cardiovascular, mas em doses mais altas causam vasodilatação, o que pode levar à hipotensão. Além disso, os efeitos não são reversíveis, e a sedação e a ansiólise proporcionadas são menos seguras.
O propofol é um hipnótico de curta duração que vem sendo usado em casos de estado de mal epiléptico refratário 21. Pode ter efeitos neuroprotetores mediante a modulação de receptores do GABA, mas também pode causar hipotensão e inotropismo negativo, além de depressão respiratória profunda.
A hiperglicemia em pacientes humanos e veterinários com lesão cerebral traumática é um achado relativamente comum e, nos últimos anos, foi demonstrado que o grau de hiperglicemia está correlacionado com a gravidade dessa lesão, mas não com o desfecho 3, portanto, não é recomendado o uso de insulina para o controle glicêmico 13.
O suporte de nutrição parenteral pode ser considerado em pacientes com risco de pneumonia por aspiração. Em seres humanos, a lesão cerebral traumática também está associada a úlceras gástricas e hemorragia 7, portanto, o uso profilático de antiácidos, como inibidores da bomba de prótons (por exemplo, omeprazol, pantoprazol) ou bloqueadores dos receptores H2 de histamina (por exemplo, famotidina), pode ser considerado. Em relação ao tratamento cirúrgico, há necessidade de mais pesquisas antes que as recomendações possam ser feitas.
A Tabela 2 fornece um resumo dos medicamentos comumente utilizados em cães com lesões cranioencefálicas.
Tabela 2. Agentes frequentemente usados no tratamento de traumatismo cranioencefálico em cães.
Fármaco | Dose | Efeitos colaterais |
---|---|---|
Opioides – agonistas mu puros
Fentanila
Metadona Morfina |
2-5 mcg/kg IV, depois infusão em velocidade contínua a 2-5 mcg/kg/h
0,2-0,5 mg/kg IV/IM 0,25-0,5 mg/kg IM |
Sedação
Depressão respiratória Midríase Respiração ofegante Disforia Náusea |
Opioides – agonistas mu parciais
Buprenorfina
|
0,01-0,03 mg/kg IV/IM |
Sedação
Depressão respiratória Midríase Respiração ofegante (menos frequente) Disforia Náusea |
Antagonista dissociativo do receptor NMDA
Cetamina
|
0,1-1,0 mg/kg IV, depois 2-10 mcg/kg/min | Taquicardia Aumento da demanda miocárdica de oxigênio Desorientação |
Bloqueador dos canais de sódio
Lidocaína
|
1-2 mg/kg IV durante 5-10 minutos, depois 25-50 mcg/kg/min |
Náusea
Arritmias |
Agonista alfa-2
Dexmedetomidina
|
0,5-3 mcg/kg IV/IM, depois 0,5-1 mcg/kg/h |
Sedação
Hipotensão Depressão respiratória |
Benzodiazepínicos
Midazolam
|
0,1-0,5 mg/kg IV/IM/IN | Excitação paradoxal |
Derivado de fenotiazina
Acepromazina |
0,005-0,02 mg/kg IV
O efeito máximo dura 20-30 minutos |
Hipotensão |
Anestésico hipnótico
Propofol |
1-5 mg/kg IV, depois 100-400 mcg/kg/min |
Hipotensão
Diminuição do débito cardíaco Depressão respiratória |
Anticonvulsivante
Levetiracetam
|
40-60 mg/kg IV, depois 20-40 mg/kg IV/VO a cada 8 horas |
Sedação (mínima) |
Anticonvulsivante barbitúrico
Fenobarbital
|
4 mg/kg IV a cada 6 horas por 24 horas, depois 2-2,5 mg/kg VO a cada 12 horas |
Alterações comportamentais
Sedação Ataxia (tronco) Poliúria/polidipsia Alteração das enzimas hepáticas |
O cão com traumatismo cranioencefálico ou lesão cerebral traumática pode representar um desafio em termos de avaliação e tratamento veterinário, mas com intervenção apropriada, muitos exibirão uma melhora significativa e, de modo geral, os cães parecem ser capazes de superar quaisquer déficits neurológicos residuais. Entretanto, é difícil prever o prognóstico após esse tipo de trauma, pois isso depende da gravidade da lesão, do momento de início do tratamento e de sua eficácia. A avaliação regular e seriada do paciente com o uso da escala de coma pode ajudar a avaliar o prognóstico quanto à recuperação em casos específicos. É importante informar os tutores sobre possíveis sequelas ou déficits neurológicos residuais, incluindo (mas não se limitando a) convulsões.
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David Sender
O Dr. Sender é médico-veterinário formado pela University of Illinois (Universidade de Illinois) e fez estágio rotativo em Medicina de Pequenos Animais na Colorado State University (Universidade do Estado do Colorado). Leia mais
Kendon Kuo
Depois de se formar na University of California, Davis (Universidade da Califórnia, Davis) em 2010, o Dr. Kuo fez estágio de um ano em Medicina e Cirurgia de Pequenos Animais na Auburn University Leia mais
A insuficiência cardíaca aguda em cães acarreta um sério risco de morte, e otimizar o diagnóstico e o tratamento é fundamental, conforme discutido por Luca Ferasin.
Os médicos-veterinários frequentemente enfrentam desafios ao trabalhar com criadores de forma bem-sucedida. No entanto, este artigo discute como essa relação pode se tornar uma experiência positiva para ambas as partes.
Prescrever fluidos intravenosos para gatos não é tão simples quanto pode parecer à primeira vista; este artigo oferece uma visão abrangente do que se conhece atualmente atual sobre o assunto.
O que podemos fazer quando um paciente diabético grave chega a uma clínica de emergência? Este artigo descreve passo a passo a abordagem a ser adotada para obter o resultado ideal.