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Veterinary Focus

Número da edição 33.1 Sistema Gastrointestinal

Hipoadrenocorticismo atípico canino

Publicado 20/12/2023

Escrito por Romy M. Heilmann

Disponível em Français , Deutsch , Italiano , Español , English , ภาษาไทย e 한국어

A doença de Addison talvez não seja o primeiro diagnóstico que vem à mente quando um cão apresenta sinais gastrointestinais, mas essa possibilidade não deve ser descartada, como descreve Romy Heilmann.

© Shutterstock

Hipoadrenocorticismo atípico canino

Pontos-chave

Os cães com hipoadrenocorticismo típico geralmente apresentam um quadro clínico óbvio e achados clinicopatológicos evidentes, possibilitando a formulação de um diagnóstico de forma simples e sem complicação.


O hipoadrenocorticismo atípico costuma estar associado a sinais gastrointestinais crônicos inespecíficos que aparecem e desaparecem, podem ser desencadeados ou exacerbados pelo estresse e, com frequência, respondem ao tratamento sintomático.


A avaliação de cães com hipoadrenocorticismo atípico requer uma “abordagem investigativa” do paciente, a fim de chegar ao diagnóstico correto.


Ambas as formas de hipoadrenocorticismo são, em geral, associadas a um prognóstico muito bom a longo prazo.


Introdução

O hipoadrenocorticismo em sua forma típica (doença de Addison) é frequentemente um diagnóstico de fácil formulação quando os sinais clássicos e as alterações clinicopatológicas são óbvios e se encaixam perfeitamente no histórico e na identificação do paciente – por essa razão, pode parecer estranho que um gastroenterologista tenha de considerar esse problema ao realizar um exame. No entanto, o quadro clínico de cães acometidos – particularmente aqueles com hipoadrenocorticismo atípico espontâneo – pode ser inespecífico. Isso pode envolver sinais gastrointestinais crônicos que aparecem e desaparecem, podem ser desencadeados ou exacerbados por eventos estressantes e, muitas vezes, respondem à fluidoterapia e ao tratamento sintomático. Assim, o hipoadrenocorticismo – em particular a sua forma atípica – pode mimetizar doenças gastrointestinais primárias e não deve ser omitido da lista de diagnósticos diferenciais em cães que apresentam sinais gastrointestinais vagos e inespecíficos.

Alguns detalhes do histórico

Terminologia

O hipoadrenocorticismo, ou doença de Addison, desenvolve-se quando o córtex adrenal é incapaz de produzir e liberar quantidades suficientes de glicocorticoides endógenos e – especialmente em casos típicos – também de mineralocorticoides (Figura 1) 1. Ao contrário da apresentação típica do hipoadrenocorticismo, com aspectos clínicos e clinicopatológicos característicos causados pela deficiência concomitante de glicocorticoide e mineralocorticoide, os casos de hipoadrenocorticismo atípico em cães são mais difíceis de diagnosticar, pois essa forma de insuficiência adrenal não só é menos comum, mas também produz um quadro clínico mais sutil e inespecífico 1,2. É possível a transição do hipoadrenocorticismo atípico para o típico; por essa razão, os casos atípicos devem ser monitorados ao longo do tempo 2. Nos cães com a apresentação típica, em que pode ocorrer descompensação clínica com desidratação e choque hipovolêmico (crise addisoniana), a evolução de uma deficiência isolada de glicocorticoides pode ser meramente assumida com base na impressão retrospectiva de um início lento da doença e dos sinais clínicos associados. Entretanto, é difícil comprovar essa evolução em casos típicos de hipoadrenocorticismo. Há relatos de predisposições raciais em Poodle Standard, Cão D’água Português, Retriever Nova Escócia Duck Tolling, Soft Coated Wheaten Terrier e Bearded Collie, mas cães de qualquer raça e idade podem ser acometidos por qualquer forma desta condição 2,3,4,5. Em comparação com casos típicos, os cães com hipoadrenocorticismo atípico tendem a ser mais idosos.

Classificação atual do hipoadrenocorticismo espontâneo em cães

Figura 1. Classificação atual do hipoadrenocorticismo espontâneo em cães.

Etiologia 

O hipoadrenocorticismo pode ser causado por qualquer condição que diminua a produção e liberação de hormônios do córtex adrenal. É mais comum que essa endocrinopatia seja causada por um processo imunomediado que reduz a massa funcional do córtex adrenal produtor de hormônios, particularmente a porção média e interna produtora de glicocorticoides (zona fasciculata) 5,6,7. Outras causas menos comuns ou raras de hipoadrenocorticismo primário incluem distúrbios granulomatosos (por exemplo, doença fúngica), quadros vasculares (por exemplo, hemorragia, isquemia), depósitos de amiloide (particularmente em raças predispostas a desenvolver amiloidose), necrose, ou neoplasia metastática 8,9,10. O hipoadrenocorticismo secundário (central) pode evoluir a partir de condições que afetam a produção e liberação do hormônio liberador de corticotrofina (CRH) pelo hipotálamo e/ou do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) pela hipófise, incluindo inflamação, infecções, traumatismo, e neoplasia 1,11.

Fisiopatologia

Na forma típica do hipoadrenocorticismo, a deficiência descompensada de glicocorticoides e mineralocorticoides resulta em alterações eletrolíticas características (hipercalemia, hiponatremia) no plasma 1. Em contraste, na forma atípica, há apenas deficiência de glicocorticoides ou deficiência combinada de corticosteroides (glicocorticoides e mineralocorticoides) sem alterações eletrolíticas, em virtude de mecanismos compensatórios independentes da aldosterona (por exemplo, compensação renal) 1,2.

Detectando o hipoadrenocorticismo – o grande fingidor

Sinais clínicos

Considerando os vários efeitos dos glicocorticoides liberados por via endógena no corpo (Figura 2), incluindo funções cardíacas e gastrointestinais 12,13, os cães com hipoadrenocorticismo atípico geralmente apresentam sinais inespecíficos vagos que aparecem e desaparecem, tais como: nível reduzido de atividade (por exemplo, durante o desempenho de agilidade), letargia, fraqueza, inapetência, perda de peso ou condição corporal magra (Figura 3), vômitos (com ou sem hematêmese) ou regurgitação, diarreia (que pode ser hemorrágica), dor abdominal, e incontinência 1,2,13,14.

Efeitos dos glicocorticoides endógenos (cortisona) em diferentes tecidos do corpo

Figura 2. Efeitos dos glicocorticoides endógenos (cortisona) em diferentes tecidos do corpo. Com a deficiência de glicocorticoides (hipoadrenocorticismo), esses efeitos não serão executados sempre que houver aumento do estresse (indicado pelas setas de cor vermelha), levando a uma resposta insuficiente a esse estresse (setas de cor cinza).
© Romy Heilmann/redrawn by Sandrine Fontègne

Aspecto clínico de cão Boxer macho de 9 anos e meio de idade, com hipoadrenocorticismo atípico

Figura 3. Aspecto clínico de cão Boxer macho de 9 anos e meio de idade, com hipoadrenocorticismo atípico. O cão foi levado pelo tutor para avaliação diagnóstica mais aprofundada de sinais gastrointestinais presentes há muito tempo, com histórico de vômitos crônicos, hematêmese, hiporexia intermitente, diarreia e perda de peso (14% em 3 meses). O exame físico não exibiu nada digno de nota, exceto por um baixo escore de condição corporal igual a 2,5 em uma escala de 9 pontos.
© Ms Wendler, Bischofswerda, SN, Germany

Diagnóstico laboratorial

O banco de dados mínimo deve incluir hemograma completo, bioquímica sérica e urinálise (com avaliação do sedimento urinário e, se indicado, cultura bacteriana com teste de suscetibilidade antimicrobiana e relação proteína/creatinina na urina). Muitas vezes, esses testes podem revelar alterações sutis e inespecíficas em cães com hipoadrenocorticismo atípico. Contudo, uma leve anemia arregenerativa é um achado comum, pois o cortisol aumenta o processo de eritropoiese e diminui a renovação (turnover), dos eritrócitos, mas a ausência de leucograma de estresse esperado (ou até mesmo tendências opostas em contagens celulares de alguns pacientes, muitas vezes referidas como “leucograma de estresse reverso”) pode ser um indicador sutil e passar despercebido se não for avaliado especificamente (Quadro 1). Levando em consideração os efeitos antagônicos dos glicocorticoides nas contagens de neutrófilos e linfócitos, uma relação de neutrófilos-linfócitos ≤ 2,3 deve levantar a suspeita de hipoadrenocorticismo 15.

Quadro 1. Achados hematológicos relevantes em uma cadela de 6 anos de idade, com hipoadrenocorticismo. Observe a presença de “leucograma de estresse reverso”, com leve linfocitose, eosinofilia e diminuição da relação de neutrófilos-linfócitos (= 1,31). Qualquer relação de neutrófilos-linfócitos ≤ 2,3 deve levantar a suspeita de hipoadrenocorticismo.

Parâmetro Resultado Unidade Intervalo de referência
Eritrograma
Hematócrito 33,8 % 37,3-61,7
MCV 61,2 fL 61,6-73,5
MCH 22,3 pg 21,2-25,9
Leucograma
Contagem de neutrófilos 7,53* x 109/L 2,95-11,64
Contagem de linfócitos 5,75* x 109/L 1,05-5,10
Contagem de monócitos 0,67 x 109/L 0,16-1,12
Contagem de eosinófilos 1,25 x 109/L 0,06-1,23
Contagem de basófilos 0,07 x 109/L 0,00-0,10
Trombócitos
Contagem de plaquetas 368 K/µl 148-484
MPV 9,7 fL 8,7-13,2

Relação de neutrófilos-linfócitos = 1,31

 

Podem ser detectados os achados a seguir: hipoglicemia (ou uma concentração de glicose no sangue baixa a normal), hipoalbuminemia, hipocolesterolemia, aumento da atividade das enzimas hepáticas (com um padrão hepatocelular de aumento enzimático – ou seja, ALT sérica aumentou mais do que a elevação da fosfatase alcalina) e azotemia pré-renal leve a moderada 1. No entanto, a distinção da azotemia renal pode ser um grande desafio, pois cães com hipoadrenocorticismo geralmente apresentam uma capacidade reduzida de concentração da urina (densidade urinária < 1,030). Na melhor das hipóteses, alguns ou todos esses achados clinicopatológicos podem levantar a suspeita de hipoadrenocorticismo ou, pelo menos, devem ser um motivo para não deixar de lado a possibilidade de a condição ser a causa subjacente da apresentação clínica antes de avaliar o paciente em busca de outros diagnósticos diferenciais (por exemplo, enteropatia perdedora de proteínas, hepatopatia crônica) com uma abordagem diagnóstica mais invasiva sob anestesia geral. Isso é algo importante, porque o estresse associado a procedimentos invasivos pode colocar o cão em uma situação potencialmente fatal de hipoadrenocorticismo descompensado se o problema não for identificado. A hipercalemia e a hiponatremia, frequentemente expressas como uma diminuição da relação de sódio-potássio (Na/K < 27), são achados característicos na forma típica de hipoadrenocorticismo, mas estão ausentes na forma atípica (Quadro 2) 4. Ferramentas digitais de saúde, particularmente algoritmos que incorporam os resultados de vários achados de rotina, podem ajudar a melhorar a detecção de casos de hipoadrenocorticismo atípico no futuro 16.

Quadro 2. Perfil bioquímico sérico com eletrólitos do cão Boxer da Figura 3. Exceto pela hipoalbuminemia leve e por concentrações séricas de colesterol e glicose baixas a normais, a bioquímica sérica deste cão não exibiu nada digno de nota, e havia a suspeita de uma enteropatia perdedora de proteínas.

Parâmetro Resultado Unidade Intervalo de referência
Glicose 97 mg/dL 57-126
Colesterol 167 mg/dL 139-398
SDMA 11 µg/dL 0-14
Creatinina 1,1 mg/dL 0,5-1,5
BUN 21 mg/dL 9-29
Fosfato 1,1 mmol/L 0,9-1,7
Cálcio 2,3 mmol/L 2,1-2,9
ALT 72 U/L 25-122
Fosfatase alcalina 37 U/L 14-147
Proteína total 5,9 g/dL 5,4-7,6
Albumina 2,3 g/dL 2,8-4,3
Bilirrubina 0,2 mg/dL 0-0,4
Sódio 145 mmol/L 142-153
Potássio 4,2 mmol/L 3,9-5,8

 

Testes endócrinos

A medição da concentração sérica de cortisol basal é um teste de triagem útil (Quadro 3). O uso de um valor de corte de referência de 2 μg/dL (55 nmol/L) descarta um diagnóstico (sensibilidade de 100%, especificidade de 63-78%) de hipoadrenocorticismo (Quadro 4) 17,18. Se o valor basal for < 2 μg/dL, deve-se realizar um teste de estimulação com ACTH para diagnosticar ou excluir o hipoadrenocorticismo 1,17,18. Com esse teste, um cortisol sérico < 2 μg/dL é diagnóstico, enquanto níveis > 6 μg/dL são excludentes. O teste de estimulação com ACTH em baixa dose (com o uso de 1 μg/kg de cosintropina IV, em vez da dose-padrão de 5 μg/kg) é eficaz no diagnóstico de hipoadrenocorticismo em cães 19. A medição da concentração de ACTH endógeno pode ser utilizada para confirmar o hipoadrenocorticismo e classificar sua natureza como um quadro primário ou secundário (Quadro 5) 1,15. O hipoadrenocorticismo primário (isto é, de origem adrenal) está associado a uma concentração normal ou elevada de ACTH endógeno, enquanto o hipoadrenocorticismo secundário (isto é, de origem central, envolvendo o hipotálamo e/ou a hipófise) está ligado a uma concentração indetectável ou baixa de ACTH endógeno.

Quadro 3. Perfil tireoidiano e gastrointestinal do cão Boxer com hipoadrenocorticismo atípico da Figura 3. São detectados os seguintes achados: baixa concentração de tiroxina total e livre, hipercobalaminemia (sem suplementação prévia) e hipocortisolemia (abaixo do valor de corte de 55 nmol/L utilizado para a triagem de hipoadrenocorticismo). Esses resultados devem ser acompanhados do teste de estimulação com ACTH.

Parâmetro Resultado Unidade Intervalo de referência
Perfil tireoidiano
Ttotal 0,8 µg/dL 1,0-4,0
Tlivre < 0,3 ng/dL 0,6-3,7
Perfil gastrointestinal
Lipase pancreática específica canina 142 µg/dL 0-200
Imunorreatividade sérica semelhante à da tripsina canina 37 µg/dL 8,5-35
Cobalamina 1 355 pmol/L 173-599
Folato 25,9 nmol/L 21,1-54
Cortisol (basal)
6,5
nmol/L 25-125

 

Algoritmo diagnóstico para testes endócrinos em cães com suspeita de hipoadrenocorticismo

Quadro 4. Algoritmo diagnóstico para testes endócrinos em cães com suspeita de hipoadrenocorticismo. O fluxograma mostra a triagem diagnóstica sugerida para hipoadrenocorticismo (painéis à esquerda) se a suspeita clínica dessa condição for moderada ou baixa. A interpretação correta do teste de diagnóstico confirmatório (painéis à direita), realizado se a suspeita clínica da doença for moderada a alta, requer que qualquer tratamento prévio que possa interferir nos resultados (por exemplo, tratamento com glicocorticoides [inclusive tópico], antifúngicos azólicos) dentro de 4 semanas do teste seja excluído. A maioria dos cães com hipoadrenocorticismo terá uma concentração de cortisol sérico – basal e pós-ACTH abaixo de 2 μg/dL (55 nmol/L). As concentrações séricas de cortisol estimuladas por ACTH > 2 μg/dL (> 55 nmol/L), porém < 6 μg/dL (< 165 nmol/L), são questionáveis e refletem alguma capacidade de reserva adrenal; nesse caso, é recomendável a exploração de possíveis causas de supressão adrenal.

Algoritmo diagnóstico para uma avaliação mais aprofundada do estado dos hormônios adrenais em cães com hipoadrenocorticismo atípico

Quadro 5. Algoritmo diagnóstico para uma avaliação mais aprofundada do estado dos hormônios adrenais em cães com hipoadrenocorticismo atípico. Se o teste de estimulação com ACTH confirmar o diagnóstico de hipoadrenocorticismo, particularmente se a concentração de cortisol sérico estimulado por ACTH for < 2 μg/dL, a concentração de ACTH endógeno pode ser medida para diferenciar o hipoadrenocorticismo primário (adrenal) do secundário (central). A ausência de quaisquer alterações eletrolíticas, somada à medição de aldosterona sérica pré e pós-estimulação com ACTH, pode distinguir entre casos de hipoadrenocorticismo atípico com deficiência de glicocorticoides apenas e aqueles cães com insuficiência ou deficiência concomitante (compensada) de mineralocorticoides. A deficiência de mineralocorticoides é presumida e geralmente não confirmada pela medição de aldosterona sérica em cães com hipoadrenocorticismo típico (hipercalemia e/ou hiponatremia confirmada).

A relação de cortisol/creatinina urinária (RCCU) recentemente recebeu uma atenção especial para o diagnóstico de hipoadrenocorticismo canino, e uma RCCU baixa (≤ 2 medida por radioimunoensaio ou ≤ 10 por imunoensaio quimioluminescente) foi altamente sensível e específico na distinção de cães afetados daqueles com doença que mimetiza o hipoadrenocorticismo 20.

A deficiência de mineralocorticoides sem hipercalemia e/ou hiponatremia, presumivelmente compensada por mecanismos renais, pode ser detectada pela medição da aldosterona sérica pré- e pós-estimulação com ACTH (Quadro 6). Esse teste pode ajudar a diferenciar entre casos de hipoadrenocorticismo atípico com deficiência de glicocorticoide apenas e cães com deficiência combinada de corticosteroides, mas sem alterações eletrolíticas 21. Os perfis tireoidianos em cães com hipoadrenocorticismo podem revelar níveis séricos elevados de TSH e, em alguns casos, níveis reduzidos de tiroxina (Quadro 3); além de não refletirem um hipotireoidismo verdadeiro, os níveis se normalizarão dentro de semanas (até 4 meses) após o início do tratamento do hipoadrenocorticismo 22.

Quadro 6. Níveis séricos de cortisol e aldosterona pré e pós-estimulação com ACTH no cão Boxer da Figura 3. As concentrações séricas de cortisol e aldosterona não aumentaram após a estimulação com ACTH, confirmando a deficiência de glicocorticoides e mineralocorticoides (compensada) nesse cão.

Parâmetro Resultado Unidade Intervalo de referência
Teste de estimulação com ACTH (cortisol sérico)
Cortisol (basal) < 2,8 nmol/L 25-125
Cortisol (pós-ACTH)
< 2,8
nmol/L
> 165
Teste de estimulação com ACTH (aldosterona sérica)
Aldosterona (basal) < 20 pmol/L 0-393
Aldosterona (pós-ACTH) < 20 pmol/L 82-859

 

Técnicas de diagnóstico por imagem

Radiografias torácicas e abdominais costumam ser pouco recompensadoras em cães com hipoadrenocorticismo, a menos que esses exames avaliem a presença de megaesôfago associado a essa endocrinopatia; no entanto, eles podem ser considerados para descartar alguns diagnósticos diferenciais. Muitas vezes, a ultrassonografia abdominal, incluindo uma avaliação completa e minuciosa de ambas as glândulas adrenais, também não revela nada digno de nota, mas pode sugerir hipoadrenocorticismo se o diâmetro dessa glândula estiver pequeno (Figura 4). A ultrassonografia também é recomendada em casos sob suspeita para diagnosticar ou descartar neoplasia adrenal, infarto, ou hemorragia 1.

Imagem ultrassonográfica da glândula adrenal esquerda em cão com hipoadrenocorticismo

Figura 4. Imagem ultrassonográfica da glândula adrenal esquerda em cão com hipoadrenocorticismo; observe a diminuição do tamanho da adrenal (diâmetro dorsoventral de 2,6 mm). Geralmente, uma dimensão dorsoventral máxima (espessura da glândula adrenal) < 2,8 mm para a glândula adrenal esquerda é sugestiva de hipoadrenocorticismo, mas o peso corporal do cão também deve ser considerado.
© Texas A&M University

Tratamento do hipoadrenocorticismo atípico

Início da terapia

Os cães com hipoadrenocorticismo atípico são normalmente estáveis do ponto de vista clínico e podem ser tratados em um esquema ambulatorial. Todavia, a evidência de desidratação durante o exame físico justifica pelo menos um curto (breve) período de internação com fluidoterapia de reposição (com o uso de solução eletrolítica balanceada) e tratamento sintomático adicional (por exemplo, medicamentos antieméticos e gastroprotetores), conforme indicado. A hipoglicemia deve ser corrigida pela administração IV de glicose (solução de dextrose), e a glicemia monitorada.

A prednisolona (ou prednisona) é o fármaco de escolha para repor a deficiência endógena de glicocorticoides 1,2,3. Glicocorticoides de ação rápida (ou seja, dexametasona, hidrocortisona) são mais comumente utilizados para a corticoterapia de reposição aguda em pacientes com crise addisoniana. A princípio, a prednisona ou prednisolona é administrada a uma baixa dose anti-inflamatória (0,3-0,5 mg/kg VO a cada 12-24 horas) por alguns dias 1,2. Essa curta fase de indução é seguida pela redução gradual da dose para o nível mais baixo possível (“fisiológico”) – um nível que ainda seja capaz de tratar a deficiência endógena de glicocorticoide de forma eficaz, sem causar efeitos colaterais evidentes, e continue como terapia de manutenção. Encontrar a dose ideal para cada cão individualmente exige certo tempo (e paciência do tutor), mas geralmente ela fica entre 0,05-0,2 mg/kg VO a cada 24 horas, dependendo do porte e da idade do cão (Quadro 7). Dependendo do caráter e temperamento do cão, pode-se considerar um aumento de curto prazo na dose de manutenção de prednisona/prednisolona durante períodos previstos de estresse 1,2.

Quadro 7. Ajustes recomendados na dose de glicocorticoides, com base nos sinais clínicos e na suspeita de subdosagem ou suplementação excessiva.

Efeitos colaterais perceptíveis de glicocorticoides
→ redução da dose (em aproximadamente 10-25%)

Recidiva de sinais clínicos (letargia, anorexia, diarreia) 
→ aumento da dose (em cerca de 50%) 

 

Estresse significativo previsto (por exemplo, prova de agilidade, fogos de artifício em férias, cirurgia eletiva) 
→ considere o aumento da dose por pouco tempo (em aproximadamente 100-200%) em cada cão individualmente

A terapia de reposição de mineralocorticoides é indicada em casos de hipoadrenocorticismo típico (ou seja, cães que apresentam alterações eletrolíticas, refletindo uma deficiência concomitante de mineralocorticoides); no entanto, essa terapia deve ser cuidadosamente considerada em cães diagnosticados com hipoadrenocorticismo atípico, dependendo do status de mineralocorticoide endógeno. Se as concentrações séricas de aldosterona forem baixas ou indetectáveis, os eletrólitos séricos deverão ser monitorados de perto. Alternativamente, pode-se considerar a suplementação de mineralocorticoides em baixa dose (pivalato de desoxicorticosterona em uma dose inicial de 1,5 mg/kg SC a cada 25-28 dias) 23. Embora isso, pelo menos teoricamente, possa aliviar os mecanismos compensatórios da deficiência (mensurada) de mineralocorticoides, a terapia de reposição de mineralocorticoides a longo prazo também exige o monitoramento cuidadoso do paciente (eletrólitos séricos, pressão arterial sistêmica) e pode acarretar o risco de possíveis efeitos adversos 24. Os cães diagnosticados com hipoadrenocorticismo atípico que apresentam normalidade em suas concentrações séricas de aldosterona basal e/ou  estimulada com ACTH necessitam apenas da reposição de glicocorticoides, mas seus eletrólitos séricos devem ser monitorados regularmente.

Monitoramento da terapia

Os efeitos colaterais dos glicocorticoides (por exemplo, polidipsia/poliúria, polifagia, ganho de peso, perda de massa muscular, respiração ofegante, alterações na pele e pelagem, mudanças comportamentais) ainda podem ocorrer com doses muito baixas de prednisona/prednisolona, exigindo uma redução da dose em aproximadamente 10-15% (Quadro 7). Há necessidade de mais pesquisas para saber se a hidrocortisona constitui uma boa escolha alternativa para a suplementação de glicocorticoides em alguns cães. Letargia, fraqueza, hiporexia ou anorexia, vômitos e diarreia podem indicar uma reposição abaixo do ideal de glicocorticoides em cães com hipoadrenocorticismo, o que requer um aumento da dose em torno de 50% 1,2,3.

Os cães com hipoadrenocorticismo atípico submetidos à reposição de mineralocorticoides devem ser reavaliados inicialmente a cada 2-4 semanas (em geral, 10-14 dias e, outra vez, 25-28 dias após o início da suplementação com pivalato de desoxicorticosterona) 23. Se (i) as concentrações séricas de eletrólitos (sódio e potássio) estiverem dentro das faixas-alvo, (ii) a pressão arterial sistêmica permanecer normal e (iii) a dose de desoxicorticosterona não tiver sido ajustada recentemente, recomenda-se que o monitoramento da terapia seja mantido a cada 1-3 meses (isso depende do fato de o tutor conseguir aplicar as injeções de mineralocorticoide em casa) e, em cães bem controlados, a cada 3-6 meses (a menos que a injeção mensal de desoxicorticosterona tenha de ser realizada na clínica veterinária). A detecção de hipocalemia, hipernatremia ou hipertensão sistêmica (pressão arterial sistólica > 140 mmHg) requer que a dose de pivalato de desoxicorticosterona seja reduzida em cerca de 10-20% ou, pelo menos, temporariamente descontinuada 23. Em cães com hipoadrenocorticismo, é justificável a avaliação cuidadosa e meticulosa de quaisquer efeitos colaterais em potencial do tratamento. A poliúria e a polidipsia, normalmente interpretadas como um efeito colateral da (super)suplementação de predniso(lo)na, também podem refletir a superdosagem de mineralocorticoides (isto é, desoxicorticosterona) 1,23.

Romy M. Heilmann

Os cães diagnosticados com hipoadrenocorticismo atípico que apresentam normalidade em suas concentrações séricas de aldosterona basais e/ou estimuladas com ACTH necessitam apenas da reposição de glicocorticoides, mas seus eletrólitos séricos devem ser monitorados regularmente.

Romy M. Heilmann

Prognóstico para casos de hipoadrenocorticismo

Com a suplementação adequada de glicocorticoides e, se indicada ou eleita, a suplementação de mineralocorticoides e a avaliação de acompanhamento do paciente em intervalos regulares, o hipoadrenocorticismo atípico geralmente carreia um prognóstico muito bom a longo prazo (Figura 5) 1,2,25. O monitoramento da evolução para hipoadrenocorticismo típico (isto é, o desenvolvimento de hipercalemia e/ou hiponatremia) é um aspecto importante no manejo de longo prazo de cães com hipoadrenocorticismo atípico submetido à monoterapia com glicocorticoide 2,21. Nesses casos, a autora recomenda a reavaliação dos eletrólitos séricos a cada 3-6 meses; atualmente, entretanto, há uma escassez de diretrizes sobre a frequência do monitoramento ou o início da suplementação de mineralocorticoides em cães com deficiência de aldosterona sem alterações eletrolíticas.

O cão Boxer com hipoadrenocorticismo atípico

Figura 5. O cão Boxer com hipoadrenocorticismo atípico da Figura 3 após 6 meses de terapia de reposição de glicocorticoides. Os níveis séricos de eletrólitos permaneceram estáveis, e o cão retornou à atividade e condição corporal normais (escore igual a 5-6 em uma escala de 9 pontos). Os vômitos e a hematêmese cessaram logo após o início do tratamento.
© Ms Wendler, Bischofswerda, SN, Germany

Considerações finais

De modo geral, os tutores reconhecem retrospectivamente o início lento do hipoadrenocorticismo e as alterações clínicas sutis relacionadas quando seu pet mostra uma melhora rápida e melhor qualidade de vida em resposta ao tratamento. A doença requer terapia e manejo ao longo da vida, e isso geralmente é percebido como um aumento do elo homem-animal; no entanto, alguns tutores temem o desenvolvimento de uma crise addisoniana e relutam em deixar o cão sem supervisão. Felizmente, a maioria dos tutores se sente bastante confortável em lidar com um cão que tenha qualquer forma de hipoadrenocorticismo espontâneo no ambiente doméstico e sabe ou logo aprende o que observar quanto a mudanças na qualidade de vida que necessitam de mais cuidados veterinários.

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Romy M. Heilmann

Romy M. Heilmann

A professora Heilmann é internista de pequenos animais certificada pela ACVIM e ECVIM, com interesse especial em gastroenterologia, hepatologia e imunologia clínica, bem como em radiologia e endoscopia intervencionistas Leia mais

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