Hipoadrenocorticismo atípico canino
A doença de Addison talvez não seja o primeiro diagnóstico que vem à mente quando um cão apresenta sinais gastrointestinais, mas essa possibilidade não deve ser descartada, como descreve Romy Heilmann.
Número da edição 33.1 Pâncreas exócrino
Publicado 20/11/2023
Disponível em Français , Deutsch , Italiano , Română , Español , English e 한국어
A insuficiência pancreática exócrina felina é mais comum do que geralmente se imagina. Este artigo oferece dicas para um diagnóstico e tratamento bem-sucedidos da doença.
A insuficiência pancreática exócrina deve ser considerada em gatos com perda de peso e/ou fezes moles, embora doenças concomitantes possam resultar na presença de outros sinais.
A imunorreatividade sérica semelhante à da tripsina em gatos é o teste com padrão de excelência (padrão-ouro) para o diagnóstico de insuficiência pancreática exócrina nessa espécie; outros testes, como atividade da amilase ou lipase, ou mesmo exame histopatológico, são menos sensíveis e específicos.
O tratamento da insuficiência pancreática exócrina felina baseia-se principalmente na suplementação de enzimas pancreáticas e cobalamina.
Os gatos que não respondem ao tratamento adequado para insuficiência pancreática exócrina devem ser reavaliados quanto à presença de outros possíveis diagnósticos ou doenças concomitantes, como uma enteropatia crônica.
A insuficiência pancreática exócrina resulta da produção insuficiente de enzimas pelas células acinares do pâncreas, levando a má digestão, má-absorção e subsequentes sinais clínicos, como perda de peso e diarreia. Embora a insuficiência pancreática exócrina tenha sido considerada rara no gato, atualmente se admite que muitos casos escaparam do diagnóstico no passado em função da falta de testes diagnósticos sensíveis e específicos, bem como devido à baixa conscientização da doença e sua coexistência com outras condições gastrointestinais (GI) que causam sinais clínicos semelhantes. Até pouco tempo, a literatura especializada sobre insuficiência pancreática exócrina felina era escassa, consistindo em relatos de casos confirmados ou suspeitos em 10 gatos publicados entre 1975 e 2009 1,2,3,4,5,6,7,8,9, bem como duas pequenas séries de casos que juntos englobavam um total de 36 gatos afetados 10,11. Mais recentemente, foi publicado um grande estudo retrospectivo que avaliou 150 gatos com insuficiência pancreática exócrina 12, e, em 2021, um pequeno estudo retrospectivo multicêntrico descreveu os achados ultrassonográficos e clinicopatológicos em 22 gatos com essa doença 13.
A verdadeira prevalência da insuficiência pancreática exócrina felina é desconhecida e, (conforme observado anteriormente), a condição é tradicionalmente considerada rara no gato, com apenas alguns relatos de casos publicados. Todavia, desde a introdução do teste de imunorreatividade semelhante à da tripsina felina em 1995 14, um número consideravelmente maior de casos foi diagnosticado. Em um estudo recente, foi feita uma busca no banco de dados do Laboratório Gastrointestinal da Texas A&M University durante um período de aproximadamente 2 anos (2008-2010), e 1.094 de 46.529 amostras de soro (2,4%) de gatos submetidos à mensuração da imunorreatividade semelhante à da tripsina apresentaram níveis compatíveis com um diagnóstico de insuficiência pancreática exócrina 12. Apesar do fato de que havia um viés na população utilizada neste estudo (uma vez que ele revisou gatos que apresentavam sinais gastrointestinais e, portanto, uma possível suspeita de insuficiência pancreática exócrina), parece que esse tipo de insuficiência se trata de uma condição que não é incomum em gatos. Não se sabe se esses números refletem um verdadeiro aumento na prevalência ou são apenas uma indicação de que agora os clínicos têm maior consciência da doença e métodos mais eficazes para chegar a um diagnóstico. Portanto, embora sua verdadeira prevalência ainda não tenha sido determinada, deve-se suspeitar de insuficiência pancreática exócrina em casos com quadro clínico compatível.
Nenhum estudo investigou especificamente as possíveis causas da insuficiência pancreática exócrina felina, embora tradicionalmente um quadro de pancreatite crônica com a consequente destruição gradual e extensa das células acinares quase sempre seja citado como a única etiologia. Esse conceito, no entanto, baseava-se em um pequeno número de relatos de casos 13,15, e, embora ainda se acredite que a pancreatite crônica seja a causa mais comum de insuficiência pancreática exócrina felina, também pode haver outras etiologias. Apesar de ser algo não comprovado, acredita-se que seja necessário um período de tempo prolongado, para que a inflamação crônica cause a destruição quase completa do pâncreas exócrino; entretanto, estudos recentes observaram que gatos jovens podem desenvolver insuficiência pancreática exócrina, tornando a pancreatite crônica uma causa menos provável, especialmente nessa faixa etária 12. Outras etiologias em potencial da insuficiência pancreática exócrina podem incluir atrofia acinar pancreática (relatada em um pequeno número de casos), infestação por Eurytrema procyonis (um trematódeo encontrado em partes dos EUA e, novamente, relatado em um pequeno número de casos), hipoplasia ou aplasia pancreática, e atrofia por compressão atribuída à obstrução do ducto pancreático 1,2,3,4,5,6,7,8,9, 13. Embora a deficiência isolada de lipase pancreática tenha sido recentemente relatada como uma das causas de insuficiência pancreática exócrina em cães (com outras enzimas pancreáticas dentro dos parâmetros de normalidade) 16, ainda não há relatos disso em gatos.
Acredita-se que o pâncreas exócrino tenha uma reserva funcional excepcional e também que os sinais clínicos de insuficiência pancreática exócrina se desenvolvam apenas quando há uma perda de > 90% da capacidade secretora 13. Independentemente da causa, a produção e secreção insuficientes de enzimas pancreáticas no intestino delgado levam à má digestão de nutrientes. A grande quantidade de nutrientes não digeridos no intestino pode gerar diarreia osmótica, enquanto a absorção reduzida de nutrientes causa perda de peso.
Outro ponto de grande importância é a associação fisiopatológica entre a função do pâncreas e a absorção de cobalamina. Uma proteína ligadora de cobalamina, o fator intrínseco, facilita a absorção dessa vitamina no íleo, mas ao contrário dos cães, em que o fator intrínseco também é produzido no estômago, nos gatos ele é formado exclusivamente no pâncreas exócrino. A insuficiência pancreática exócrina, portanto, leva à redução da produção e secreção do fator intrínseco, resultando em uma diminuição da absorção intestinal de cobalamina e, dessa forma, à hipocobalaminemia e deficiência de cobalamina 17.
Nos casos em que a insuficiência pancreática exócrina é o resultado de pancreatite crônica, a destruição da porção endócrina do pâncreas pode levar ao desenvolvimento de diabetes mellitus concomitante. Além disso, muitos gatos com insuficiência pancreática exócrina podem apresentar inflamação pancreática concomitante, enteropatia crônica (tipicamente doença intestinal inflamatória e/ou linfoma gastrointestinal de pequenas células) e/ou hepatopatia.
Não existe predisposição racial ou sexual significativa para insuficiência pancreática exócrina 12; a maioria dos gatos acometidos são de meia-idade ou mais idosos, mas a faixa etária relatada é de 3 meses a 19 anos 12. Isso enfatiza o fato de que a insuficiência pancreática exócrina deve ser considerada em gatos de qualquer idade.
Os sinais clínicos dos gatos afetados são inespecíficos e são os mesmos que aqueles observados em inúmeras outras condições diagnosticadas com maior frequência (por exemplo, hipertireoidismo, enteropatias crônicas, pancreatite, doença renal crônica). A perda de peso é, sem dúvida, o sinal clínico mais comum (Figura 1) e esteve presente em mais de 90% dos 150 gatos avaliados em um estudo, sendo o único sinal clínico em 5% dos casos 12. Em 62% dos gatos, ocorreram fezes amolecidas, e 2/3 deles apresentaram diarreia aquosa ocasional (Figuras 2 e 3). Isso contrasta com o cão acometido por insuficiência pancreática exócrina típica, em que há relato de fezes amolecidas na maioria dos casos (por exemplo, 95% em um estudo 18). Outros sinais clínicos incluem más condições da pelagem (50%), polifagia (42%), anorexia (42%), letargia (40%), vômitos (19%), e pelagem oleosa 12. Alguns dos sinais relatados (por exemplo, anorexia, depressão, vômitos) não são típicos de insuficiência pancreática exócrina e provavelmente estão associados a doenças concomitantes (por exemplo, enteropatia crônica, ou inflamação do fígado e/ou pâncreas) do que a insuficiência pancreática exócrina por si só. Há um único relato de um gato com insuficiência pancreática exócrina que desenvolveu acidose D-láctica (presumivelmente devido ao aumento da fermentação intestinal como resultado de proliferação bacteriana), apresentando sinais clínicos de fraqueza, letargia e ataxia 8, mas isso é considerado raro.
Está claro que a apresentação clínica de muitos gatos com insuficiência pancreática exócrina difere da apresentação típica observada em cães, além de ser mais confusa. Os sinais clínicos são mais sutis e menos específicos em gatos, e os sinais de comorbidades são mais comuns. Portanto, deve-se suspeitar de insuficiência pancreática exócrina em casos de perda de peso inexplicável ou anorexia, mesmo nos casos em que não há diarreia ou polifagia, ou quando o quadro de vômito ou depressão é o principal sinal apresentado e a perda de peso pode ser menos perceptível.
A princípio, suspeita-se de insuficiência pancreática exócrina com base na apresentação clínica; no entanto, como várias doenças gastrointestinais felinas podem gerar sinais que se sobrepõem aos da insuficiência pancreática exócrina (e, muitas vezes, ocorrem concomitantemente com essa insuficiência), o ideal é que todo gato com doenças ou sinais gastrointestinais crônicos seja submetido a testes quanto à presença de insuficiência pancreática exócrina. Gatos com condições como doença intestinal inflamatória ou linfoma gastrointestinal de pequenas células que não respondem ao tratamento adequado podem ter insuficiência pancreática exócrina concomitante não diagnosticada. Portanto, qualquer gato com diagnóstico de enteropatia crônica ou outro problema gastrointestinal que continue a perder peso ou apresentar fezes amolecidas apesar do tratamento apropriado deve ter a insuficiência pancreática exócrina incluída na lista de diagnóstico diferencial (Figura 4).
Gatos com insuficiência pancreática exócrina costumam apresentar hemograma completo e perfil bioquímico sérico normais ou com alterações inespecíficas, mas outra vez as doenças concomitantes podem resultar em várias anormalidades (por exemplo, anemia, aumento das enzimas hepáticas, hiperglicemia, hipoalbuminemia); todavia, nenhuma dessas alterações é específica para insuficiência pancreática exócrina. As concentrações séricas de cobalamina encontram-se diminuídas na maioria dos gatos com insuficiência pancreática exócrina (80-100%) 12, mas há evidências de que a cobalamina nos tecidos sofre depleção antes que a hipocobalaminemia se desenvolva; por isso, até mesmo os gatos normocobalaminêmicos ainda podem ter deficiência celular de cobalamina 17. Embora seja um achado comum em gatos com insuficiência pancreática exócrina, a hipocobalaminemia não é específica para a condição, pois costuma aparecer em outras condições, como doença intestinal inflamatória, linfoma gastrointestinal, e hipertireoidismo 17.
A insuficiência pancreática exócrina é uma doença funcional que requer um diagnóstico funcional definitivo 13. O teste com padrão de excelência consiste na mensuração da concentração sérica da imunorreatividade semelhante à da tripsina felina (idealmente realizada em uma amostra em jejum); esse teste tem especificidade de 85-100% e, embora a sensibilidade seja desconhecida, ela é considerada alta 10,12,13. Os ensaios de imunorreatividade semelhante à da tripsina são espécie-específicos e, portanto, os testes desenvolvidos e validados para cães ou humanos não são adequados para uso em gatos. O ensaio de imunorreatividade semelhante à da tripsina felina mede os níveis séricos de tripsinogênio produzido pelo pâncreas exócrino, e o único ensaio validado atualmente disponível é fornecido pelo Laboratório Gastrointestinal da Texas A&M University. Na insuficiência pancreática exócrina, em virtude da redução significativa na capacidade funcional do pâncreas exócrino, observam-se concentrações séricas da imunorreatividade semelhante à da tripsina felina abaixo do normal; o intervalo de referência é de 12-82 μg/L, e valores ≤ 8 μg/L são considerados diagnósticos para esse tipo de insuficiência. Alguns gatos com sinais gastrointestinais clínicos apresentam concentrações de imunorreatividade semelhante à da tripsina felina na faixa intermediária (8-12 μg/L), e esses casos devem ser testados novamente algumas semanas ou meses depois para verificar se os valores normalizaram ou declinaram para a faixa de diagnóstico da insuficiência pancreática exócrina. Como o tripsinogênio é excretado pelo rim, as concentrações séricas de imunorreatividade semelhante à da tripsina felina podem estar falsamente elevadas em gatos com função renal diminuída 19, o que pode dificultar o diagnóstico. Em gatos azotêmicos em que há suspeita de insuficiência pancreática exócrina, talvez seja necessária a reavaliação das concentrações séricas de imunorreatividade semelhante à da tripsina felina após a melhora da azotemia.
As modalidades de imagem (radiografia, ultrassonografia, tomografia computadorizada) não têm utilidade para o diagnóstico de insuficiência pancreática exócrina, uma vez que esses exames não refletem a capacidade funcional do pâncreas. No entanto, a obtenção de imagens pode ser útil para o diagnóstico ou exclusão de doenças concomitantes ou condições capazes de mimetizar a insuficiência pancreática exócrina. Em um estudo multicêntrico recente, foi demonstrado que a insuficiência pancreática exócrina gera alterações ultrassonográficas mínimas ou inexistentes em gatos, embora o adelgaçamento do parênquima pancreático e a dilatação do ducto pancreático tenham sido observados em alguns casos, o que pode levantar a suspeita da insuficiência em questão 13. Da mesma forma, amostras de histopatologia, ou até mesmo a observação de um pâncreas pequeno ao exame macroscópico, não são indicativas de um diagnóstico de insuficiência pancreática exócrina, novamente porque elas não refletem a capacidade funcional do órgão, embora possa haver suspeita desse tipo de insuficiência com base em achados compatíveis.
Tal como em cães, a base do tratamento em gatos com insuficiência pancreática exócrina é a suplementação de enzimas pancreáticas. Embora existam vários produtos comerciais (extratos secos de pâncreas suíno) disponíveis, nenhum estudo avaliou de forma objetiva a eficácia dos diferentes produtos e preparações em gatos. Em um estudo, nenhuma diferença foi identificada em relação ao produto específico ou ao tipo de enzima pancreática utilizada para o tratamento de insuficiência pancreática exócrina felina e, portanto, todos os produtos podem ser igualmente eficazes 12. Apesar de relatos mais antigos apoiarem o uso de produtos em pó em cães (uma vez que os produtos com revestimento entérico eram considerados menos eficazes), um recente estudo prospectivo controlado por placebo mostrou que os produtos com revestimento entérico podem, na verdade, ser mais eficazes 20. Embora o pâncreas cru de bovinos, suínos ou animais de caça também possa ser usado 13, eles podem conter patógenos potencialmente perigosos, e a preferência do autor são produtos em pó ou com revestimento entérico.
Independentemente do produto utilizado, as enzimas pancreáticas devem ser administradas a cada refeição. O ideal é que os produtos com revestimento entérico sejam administrados imediatamente após uma refeição, enquanto os produtos em pó devem ser bem misturados aos alimentos; a pré-incubação com alimentos não parece ser necessária. Embora a dosagem seja empírica, é comum o uso inicial de 5 mL (1 colher das de chá) de enzimas em pó por refeição 13,e produtos com revestimento entérico podem ser iniciados a uma dose de 300 mg de pancreatina por dia (divididos em cada refeição); no entanto, é necessário titular a opção selecionada para cada gato, com base na resposta ao tratamento. Espera-se que isso seja rápido, com a resolução das fezes amolecidas observada geralmente na primeira semana. Uma vez que os sinais clínicos tenham desaparecido, deve-se tentar uma redução gradual para a menor dose eficaz.
Caso se faça uso de pâncreas cru, cerca de 50 g por refeição é apropriado como dose inicial, com subsequentes ajustes, conforme a necessidade. Porções de pâncreas cru podem ser mantidas congeladas até o uso por vários meses sem perda de eficácia; todavia, os tutores devem estar cientes de que essa opção pode estar associada a um pequeno risco de transmissão de doenças infecciosas e parasitárias (por exemplo, encefalite espongiforme bovina, doença de Aujeszky, e parasitas como Echinococcus spp.) 13.
Devido à sua capacidade de fragmentar proteínas e gorduras, as enzimas pancreáticas podem causar irritação e úlceras se tiverem contato prolongado com a mucosa oral ou esofágica. Portanto, as enzimas pancreáticas em pó devem ser bem misturadas aos alimentos, enquanto a administração de comprimidos ou cápsulas deve ser seguida de algum consumo de alimentos e água para reduzir o risco de estomatite e esofagite 13.
A suplementação de cobalamina também é de grande importância; foi demonstrado que a suplementação dessa vitamina afeta favoravelmente a resposta ao tratamento tanto em gatos com insuficiência pancreática exócrina como naqueles com enteropatias crônicas – duas condições que muitas vezes coexistem 12,21. A deficiência de cobalamina pode levar à inflamação do intestino e atrofia das vilosidades, além de alterações de várias vias bioquímicas e má-absorção de nutrientes como o folato 17. Em gatos com doença gastrointestinal e hipocobalaminemia grave, a suplementação de cobalamina levou não só a aumentos significativos no peso corporal, mas também à diminuição dos sinais de vômito e diarreia 21. Em um estudo de 150 gatos com insuficiência pancreática exócrina, a suplementação de cobalamina exerceu um efeito favorável sobre a resposta ao tratamento, mesmo em gatos com concentrações séricas normais de cobalamina 12. Por fim, a hipocobalaminemia associada a certas doenças gastrointestinais em cães demonstrou ser um fator prognóstico negativo, e a hipocobalaminemia em cães com insuficiência pancreática exócrina está associada a tempos de sobrevida mais curtos 22,23.
Atualmente, não se conhece a concentração sérica exata de cobalamina que indique uma deficiência celular dessa vitamina e a necessidade de suplementação. Isso é dificultado pelo fato de que os intervalos normais de cobalamina sérica variam muito entre os laboratórios. O uso de marcadores de deficiência de cobalamina – como o ácido metilmalônico sérico (MMA) – é mais útil, mas não está disponível rotineiramente 24.
Embora os gatos com hipocobalaminemia claramente necessitem de suplementação, alguns gatos normocobalaminêmicos com insuficiência pancreática exócrina (sobretudo aqueles no extremo inferior do intervalo de referência) também podem se beneficiar de um suplemento, possivelmente porque apresentam deficiência celular de cobalamina 12,17,24. Como praticamente todos os gatos com insuficiência pancreática exócrina têm ou são propensos a desenvolver deficiência de cobalamina devido à falta de fator intrínseco, pode ser recomendado que todos os casos recebam um suplemento, independentemente de sua concentração sérica de cobalamina.
Em virtude da falta do fator intrínseco e da consequente redução na absorção de cobalamina pelo trato gastrointestinal, tipicamente se recomenda a suplementação parenteral dessa vitamina 13,17. Estudos sobre a cinética da suplementação parenteral de cobalamina em gatos com ou sem doença gastrointestinal indicam que a meia-vida sérica da cobalamina é de 5 e 13 dias, respectivamente 25. Embora haja protocolos de suplementação publicados, a eficácia pode variar, dependendo da doença gastrointestinal subjacente, da frequência de administração e da formulação utilizada 13,17, além disso, nenhum estudo avaliou especificamente os protocolos de suplementação de cobalamina em gatos com insuficiência pancreática exócrina. Atualmente, o autor recomenda hidroxocobalamina (de preferência) ou cianocobalamina em uma dose total de 250 μg (500 μg para gatos com peso > 5 kg) por gato, administrada por via SC ou IM a cada 2 semanas por 6-8 semanas. Após esse período, a cobalamina é administrada em intervalos mensais, e a cobalamina sérica reavaliada a cada 3 meses; muitos gatos, no caso, necessitarão de suplementação de longo prazo, apesar do tratamento de reposição enzimática para insuficiência pancreática exócrina.
Evidências recentes indicam que a suplementação oral pode ser tão eficaz quanto a administração parenteral para corrigir a deficiência de cobalamina em gatos com doença gastrointestinal; contudo, nenhum estudo avaliou especificamente a eficácia dessa opção em gatos acometidos por insuficiência pancreática exócrina. Por essa razão, hoje em dia, o autor recomenda a administração parenteral de cobalamina para todos os gatos com insuficiência pancreática exócrina. Se isso não for possível, pode-se administrar a dose de 250 μg de cobalamina por gato (com o uso de uma preparação oral específica de cobalamina ou as mesmas preparações injetáveis de cobalamina descritas acima) diariamente por 2 a 3 meses, com subsequente reavaliação das concentrações séricas dessa vitamina.
Panagiotis G. Xenoulis
Em alguns cães, já se utilizaram antibióticos como parte do tratamento de insuficiência pancreática exócrina, supostamente para controlar a disbiose intestinal concomitante; apesar disso, não foi estabelecido nenhum benefício claro para essa prática. Em um estudo, não foi constatado que o uso de antibióticos influencia a resposta ao tratamento em gatos com insuficiência pancreática exócrina 12, e, como os distúrbios da microbiota na insuficiência pancreática exócrina felina não foram totalmente descritos ou confirmados, o emprego de tais agentes terapêuticos é de benefício desconhecido nesses casos. Considerando o fato de que o estudo citado anteriormente não tenha demonstrado um efeito positivo dos antibióticos na resposta terapêutica, e como esses agentes comprovadamente causam disbiose e resistência antimicrobiana a longo prazo, atualmente o autor não recomenda a utilização de antibióticos para gatos com insuficiência pancreática exócrina. Nos casos irresponsivos à suplementação de enzimas e cobalamina, há necessidade de investigação diagnóstica adicional, pois esses gatos podem ter doença concomitante do intestino delgado; além disso, é improvável que o uso de antibióticos melhore o desfecho. Se a antibioticoterapia for considerada necessária, pode-se tentar o metronidazol (15 mg/kg a cada 12h VO) ou tilosina (20 mg/kg, a cada 12h VO), mas isso deve ficar reservado como última opção.
Probióticos multicepas em altas doses podem ser capazes de controlar a disbiose intestinal e ser utilizados caso se suspeite disso; novamente, no entanto, não há estudos disponíveis. Por fim, o transplante de microbiota fecal está ganhando espaço como um meio de modificação da microbiota intestinal (e, provavelmente, o mais eficaz), mas não há estudos suficientes em gatos com insuficiência pancreática exócrina. Nos casos em que há suspeita de disbiose intestinal, também pode ser feita uma tentativa de transplante de microbiota fecal.
Embora nenhum estudo tenha avaliado o efeito de diferentes dietas no desfecho de gatos com insuficiência pancreática exócrina, uma dieta de manutenção de boa qualidade com alto teor de proteína aparentemente seria apropriada na maioria dos casos, a menos que a presença de doenças concomitantes determine o uso de uma dieta clínica específica. Dietas hipoalergênicas ou de eliminação costumam ser utilizadas em gatos com enteropatias crônicas e também parecem apropriadas naqueles com insuficiência pancreática exócrina, especialmente devido à probabilidade de doença gastrointestinal concomitante. No passado, dietas com baixo teor de gordura eram recomendadas para o manejo da insuficiência pancreática exócrina (sobretudo em cães), mas novamente não existem estudos em gatos.
Alguns clínicos recomendam o uso de algum inibidor da bomba de prótons (por exemplo, omeprazol ou pantoprazol) concomitantemente com a terapia de reposição de enzimas pancreáticas para reduzir a acidez gástrica e diminuir a inibição enzimática no estômago. Contudo, os benefícios desse tratamento não são conhecidos, e a maioria dos gatos parece responder bem sem essa intervenção. Mesmo assim, talvez valha a pena dar algum inibidor da bomba de prótons a um gato que não tenha respondido bem à reposição de enzimas pancreáticas e à suplementação de cobalamina para ver se as coisas melhoram.
Finalmente, há relatos ocasionais de gatos com insuficiência pancreática exócrina que apresentaram uma coagulopatia responsiva à suplementação de vitamina K 5. Embora seja algo supostamente muito raro, caso se observe algum distúrbio hemorrágico em um gato com insuficiência pancreática exócrina, os parâmetros de coagulação devem ser medidos, e a suplementação de vitamina K iniciada, se pertinente.
No geral, a resposta ao tratamento é considerada boa em 60% dos gatos com insuficiência pancreática exócrina, e a maioria dos casos tratados de forma adequada costuma ter prognóstico excelente e boa qualidade de vida 12. Apenas 13% dos casos relatados apresentaram uma resposta insatisfatória ao tratamento 12; as razões para isso não são claras. A ausência de resposta ou a resposta parcial ao tratamento pode ser atribuída à falta de administração de cobalamina ou à presença de doenças concomitantes tratadas de maneira inadequada, conforme mencionado anteriormente. Todos os gatos que não respondem ao tratamento apropriado devem ser reavaliados em busca de outros possíveis diagnósticos ou doença concomitante significativa.
insuficiência pancreática exócrina em gatos é provavelmente mais comum do que se pensava na prática clínica, mas muitas vezes passa despercebida por conta dos sinais clínicos inespecíficos e da disponibilidade limitada de testes apropriados. O ideal é que todos os gatos com enteropatia crônica e, particularmente, aqueles que não respondem ao tratamento inicial, sejam testados quanto à presença de insuficiência pancreática exócrina por meio de mensuração da imunorreatividade sérica semelhante à da tripsina específica para gatos. É provável que os gatos com insuficiência pancreática exócrina não diagnosticada e não tratada como um componente concomitante de outras condições gastrointestinais crônicas tenham uma resposta inadequada ao tratamento, enquanto a maioria dos gatos diagnosticados com insuficiência pancreática exócrina terá uma resposta satisfatória à terapia apropriada.
Sheridan V. Pancreatic deficiency in the cat. Vet. Rec. 1975;96:229.
Anderson WI, Georgi ME, Car BD. Pancreatic atrophy and fibrosis associated with Eurytrema procyonis in a domestic cat. Vet. Rec. 1987;120:235-236.
Nicholson A, Watson ADJ, Mercer JR. Fat malassimilation in three cats. Austr. Vet. J. 1989;66:110-113.
Williams DA, Reed SD, Perry LA. Fecal proteolytic activity in clinically normal cats and in a cat with exocrine pancreatic insufficiency. J. Am. Vet. Med. Assoc. 1990;197:210-212.
Perry LA, Williams DA, Pidgeon G, et al. Exocrine pancreatic insufficiency with associated coagulopathy in a cat. J. Am. Anim. Hosp. Assoc. 1991;27:109-114.
Browning T. Exocrine pancreatic insufficiency in a cat. Austr. Vet. J. 1998;76:104-106.
Root MV, Johnson KH, Allen WT, et al. Diabetes mellitus associated with pancreatic endocrine insufficiency in a kitten. J. Small Anim. Pract. 1995;36:416-420.
Packer RA, Cohn LA, Wohlstadter DR, et al. D-lactic acidosis secondary to exocrine pancreatic insufficiency in a cat. J. Vet. Intern. Med. 2005;19:106-110.
Watanabe T, Hoshi K, Zhang C, et al. Hyperammonaemia due to cobalamin malabsorption in a cat with exocrine pancreatic insufficiency. J. Feline Med. Surg. 2012;14:942-945.
Steiner JM, Williams DA. Serum feline trypsin-like immunoreactivity in cats with exocrine pancreatic insufficiency. J. Vet. Intern. Med. 2000;14:627-629.
Thompson KA, Parnell NK, Hohenhaus AE, et al. Feline exocrine pancreatic insufficiency: 16 cases (1992-2007). J. Feline Med. Surg. 2009;11(12):935-940.
Xenoulis PG, Zoran DL, Fosgate GT, et al. Feline exocrine pancreatic insufficiency: a retrospective study of 150 cases. J. Vet. Intern. Med. 2016;30:1790-1797.
Auger M, Fazio C, Steiner J, et al. Abdominal ultrasound and clinicopathologic findings in 22 cats with exocrine pancreatic insufficiency. J. Vet. Intern. Med. 2021;35:2652-2661.
Steiner JM, Medinger TL, Williams DA. Development and validation of a radioimmunoassay for feline trypsin-like immunoreactivity. Am. J. Vet. Res. 1996;57:1417-1420.
Williams DA. The Pancreas. In: Strombeck DR, Guilford WG, Center SA, et al (eds.) Small Animal Gastroenterology. Philadelphia: WB Saunders; 1996:381-410.
Xenoulis PG, Fradkin JM, Rapp SW, et al. Suspected isolated pancreatic lipase deficiency in a dog. J. Vet. Intern. Med. 2007;21;1113-1116.
Ruaux CG. Cobalamin in companion animals: diagnostic marker, deficiency states and therapeutic implications. Vet. J. 2013;196:145-152.
Batchelor DJ, Noble PJM, Cripps PJ, et al. Breed associations for canine exocrine pancreatic insufficiency. J. Vet. Intern. Med. 2007;21:207-214.
Xenoulis PG, Moraiti K, Finco DR, et al. Serum feline pancreatic lipase immunoreactivity and feline trypsin-like immunoreactivity in cats with experimentally induced chronic kidney disease. J. Vet. Intern. Med. 2021;35:2821-2827
Mas A, Noble PJ, Cripps PJ, et al. A blinded randomised controlled trial to determine the effect of enteric coating on enzyme treatment for canine exocrine pancreatic efficiency. BMC Vet. Res. 2012;8:127.
Ruaux CG, Steiner JM, Williams DA. Early biochemical and clinical responses to cobalamin supplementation in cats with signs of gastrointestinal disease and severe hypocobalaminemia. J. Vet. Intern. Med. 2005;19:155-160.
Soetart N, Rochel D, Drut A, et al. Serum cobalamin and folate as prognostic factors in canine exocrine pancreatic insufficiency: An observational cohort study of 299 dogs. Vet. J. 2019;243:15-20.
Volkmann M, Steiner JM, Fosgate GT, et al. Chronic diarrhea in dogs – retrospective study in 136 Cases. J. Vet. Intern. Med. 2017;31:1043-1055.
Worhunsky P, Toulza O, Rishniw M, et al. The relationship of serum cobalamin to methylmalonic acid concentrations and clinical variables in cats. J. Vet. Intern. Med. 2013;27:1056-1063.
Simpson KW, Fyfe J, Cornetta A, et al. Subnormal concentrations of serum cobalamin (Vitamin B12 ) in cats with gastrointestinal disease. J. Vet. Intern. Med. 2001;15:26-32.
Panagiotis G. Xenoulis
O Dr. Xenoulis se formou na Universidade Aristóteles de Tessalônica em 2003 e, atualmente, é Professor Associado na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Tessália e também Professor Adjunto na Texas A&M University (Universidade A&M do Texas). Leia mais
A doença de Addison talvez não seja o primeiro diagnóstico que vem à mente quando um cão apresenta sinais gastrointestinais, mas essa possibilidade não deve ser descartada, como descreve Romy Heilmann.
A enteropatia perdedora de proteínas é uma síndrome heterogênea em cães. Isso significa que o clínico deverá abordar cada caso individualmente.
Atualmente, há fortes evidências de que não só existem ligações significativas entre o intestino e os rins, mas também que a saúde gastrointestinal pode ser uma consideração importante no tratamento de doenças renais, conforme discutido neste artigo.
O transplante de microbiota fecal está começando a ser visto como uma opção viável para tratar diversos problemas gastrointestinais agudos e crônicos em cães, como explica Linda Toresson.