Revista médica e científica internacional dedicada a profissionais e estudantes de medicina veterinária.
Veterinary Focus

Número da edição 32.1 Outros conteúdos científicos

Centese de líquidos fetais na cadela

Publicado 08/08/2022

Escrito por Smadar Tal

Disponível em Français , Deutsch , Italiano , Español e English

Até o momento, a amniocentese raramente é utilizada em medicina veterinária, apesar de ter um enorme potencial para aplicações em situações clínicas e pesquisas. O presente artigo aborda um método estabelecido para a amostragem de líquidos fetais em cadelas.

Performing centesis using the “freehand” technique

Pontos-chave

A coleta de líquidos fetais guiada por ultrassom na cadela prenhe pode ser realizada com relativa facilidade.


A amniocentese fornece novos insights diagnósticos e terapêuticos, bem como conhecimentos para fins de pesquisa, em medicina clínica pré-natal, incluindo o diagnóstico de morte fetal e a identificação de doenças hereditárias.


A coleta de líquidos fetais por punção com agulha a partir do dia 35 até o final da gestação é um procedimento fácil e seguro na cadela.


Se realizada de forma criteriosa e com cautela, a coleta de líquidos fetais traz muito poucos riscos para a mãe ou para os filhotes em desenvolvimento.


Introdução

Embora os criadores invistam muito tempo e esforço na elaboração dos melhores protocolos de manejo reprodutivo para garantir ninhadas saudáveis, atualmente há pouquíssimas informações relacionadas com o ambiente próximo da “unidade” fetal canina. As membranas fetais contêm o filhote canino em desenvolvimento durante toda a gestação e, juntamente com a placenta, desempenham um papel fundamental no crescimento e na evolução dos fetos 1, pois são essenciais para as trocas metabólicas, gasosas e hormonais entre a mãe e o feto 2. As membranas fetais da espécie canina são o alantoide, o âmnio, o córion (também conhecido como cório) e o saco vitelino 3mas as pertinentes à amostragem de líquidos fetais nessa espécie são o âmnio e o alantoide (Figura 1).

A schematic diagram of the canine placental structure in late pregnancy

Figura 1. Diagrama esquemático da estrutura placentária canina no final da gestação.

Créditos : Redesenhado por Sandrine Fontègne

Qual a definição de líquidos fetais?

A cavidade amniótica fornece proteção física para o feto em desenvolvimento dentro de um meio líquido 4, o líquido amniótico. Este é um líquido biológico complexo que confere proteção mecânica e antimicrobiana para o feto, bem como lubrificação, nutrição e fatores de crescimento, todos importantes para o desenvolvimento normal 5. O líquido amniótico é formado com as contribuições de secreções orais, nasofaríngeas, traqueais e pulmonares, bem como pela excreção urinária do concepto (composto pelo embrião e seus anexos ou membranas associadas) 6.

O líquido alantoide em carnívoros se acumula dentro da membrana alantoide que circunda o âmnio 7. O saco alantoide se desenvolve até revestir o saco coriônico quase por completo e persiste até o parto. Ele se comunica com o aparelho urinário do feto e atua como um reservatório de resíduos para os produtos metabólicos fetais 4. Os principais mecanismos para o acúmulo inicial de líquido alantoide são provavelmente o transporte transmembrana e a atividade secretora das membranas extraembrionárias e – mais tarde na gestação – de mesonefros, metanefros e secreções renais 8.

Como resultado, os líquidos fetais podem ser coletados das cavidades amniótica e alantoide no cão (Figura 2). Qualquer alteração no volume e na composição de qualquer um dos líquidos fetais pode indicar o estado metabólico, patológico ou evolutivo do feto em um estágio gestacional específico 8. A coleta de líquidos fetais na cadela é viável a partir da segunda metade da gestação, pois, além de haver uma quantidade suficiente de líquidos, as membranas amniótica e alantoide são discerníveis na ultrassonografia 9. A centese é realizada com agulha por via transabdominal e guiada continuamente por ultrassom 10.

Normal amniotic (transparent) and allantoic (yellow) fluids obtained by centesis

Figura 2. Líquidos amniótico (transparente) e alantoide (amarelo) normais obtidos por centese.

Créditos: Smadar Tal

Por que realizar a centese de líquidos fetais?

A principal razão para a coleta de líquidos no feto é permitir a avaliação da viabilidade fetal e a detecção de doenças antes do nascimento 11,12,13. A análise do líquido amniótico é amplamente utilizada na medicina clínica humana para o diagnóstico de anomalias cromossômicas ou distúrbios de um único gene, bem como para a avaliação da maturidade pulmonar fetal, invasão microbiana da cavidade amniótica, inflamação intra-amniótica, infecções fetais e determinação do sexo 14,15,16. Na medicina veterinária, a detecção precoce de anomalias é importante para o bem-estar animal, além de ser algo vantajoso para o criador, tanto em termos de produção de filhotes saudáveis (e manutenção da saúde da mãe) como do ponto de vista financeiro. Até o momento, apenas alguns estudos analisaram os líquidos fetais de cadelas a termo 17,18; um estudo de caso demonstrou a viabilidade de realizar a análise de gênero (sexo) a partir de células amnióticas de uma gestação canina única 19. Além disso, a punção das cavidades amniótica ou alantoide é utilizada na espécie canina para fins de pesquisa 20,21, terapia gênica e indução de aborto 22. Também há interesse em saber como a técnica pode contribuir para o conceito de “Saúde Única” (One Health em inglês, a integração da saúde humana, animal e ambiental). Considerando que os cães e seus tutores compartilham o mesmo habitat e estão expostos às mesmas condições ambientais, esses pets podem ser um bom modelo para estudar certos efeitos ambientais, como as toxinas (Figura 3).

Figura 3. A centese de líquidos fetais se presta a várias aplicações de diagnóstico e pesquisa, incluindo a análise de agentes microbianos, a caracterização genética, a cultura de células fetais e a análise física do líquido.

Créditos: Redesenhado por Sandrine Fontègne

Daqui para a frente, a coleta de líquidos fetais se tornará essencial para estabelecer um banco de dados, com o objetivo de caracterizar os líquidos amniótico e alantoide em cadelas prenhes saudáveis; isso permitirá a determinação de biomarcadores que podem ser usados como indicadores de desfecho perinatal.

Smadar Tal

Qualquer alteração no volume e na composição do líquido amniótico ou alantoide pode indicar o estado metabólico, patológico ou evolutivo do feto em uma etapa gestacional específica.

Smadar Tal

Em que momento a centese deve ser realizada?

Uma técnica eficaz e viável para a centese de líquidos fetais em cadelas prenhes durante a segunda metade da gestação foi criada pela autora. O procedimento é feito de forma semelhante ao utilizado em seres humanos, ou seja, guiado por ultrassom 9. Antes do dia 35 pós-concepção, o volume de líquidos fetais na cadela é baixo e, por isso, pode-se supor que o risco potencial de lesões do concepto seja maior. Espera-se que a coleta de líquidos fetais por punção com agulha a partir do dia 35 até o final da gestação seja um procedimento seguro 17,19.

Metodologia

Uma cadela com amostragem agendada de líquidos fetais deve ser submetida a um exame geral e ginecológico completo, incluindo pelo menos urinálise, exames de sangue (hemograma completo e perfil bioquímico) e ultrassonografia abdominal, a fim de determinar uma base de referência em relação à sua saúde e ao estado gestacional.

Antes da coleta de amostras, o abdômen deve ser submetido à tricotomia e desinfecção com o uso de solução cirúrgica de iodopovidona e solução de etanol a 70%. Em 30-60 minutos antes do procedimento, aplica-se um creme anestésico local tópico (lidocaína/prilocaína) na pele a no máximo 0,4 mL/kg sobre a área onde as agulhas serão inseridas. A pele tratada é, então, coberta com uma bandagem adesiva até o início da coleta 23.

Existem duas opções para a amostragem, mas ambas fazem uso de uma agulha espinal descartável (calibre 18-21 × 3 polegadas e meia/9 cm).

Técnica à mão livre

Esse método é realizado sem o uso de dispositivo para orientação da agulha (ou seja, trata-se de uma técnica não guiada por ultrassom). A cavidade uterina e gestacional, bem como o feto, são primeiramente examinados por meio da ultrassonografia e, em seguida, seleciona-se um local que pareça ser ideal para a coleta de líquidos, sem lesionar o feto ou as membranas fetais. Ao mesmo tempo, estimam-se a localização do feto (no corno uterino esquerdo ou direito) e o local de coleta (alantoide ou âmnio). A agulha espinal é, então, inserida em um ângulo de quase 90° através da parede abdominal e avançada primeiro na cavidade uterina e depois no saco gestacional (âmnio ou alantoide). Tanto a membrana amniótica como a alantoide são frequentemente visíveis no exame, mas nem sempre é possível identificar a posição exata da ponta da agulha (Figura 4). Uma vez que a agulha esteja posicionada, o líquido é aspirado com o auxílio de uma seringa de 3 ou 5 mL e imediatamente transferido para um tubo estéril e congelado a -20°C ou -80°C para futuras análises.

Performing centesis using the “freehand” technique

Figura 4. Realização da centese com a técnica à “mão livre”.

Créditos: Smadar Tal/Koret School of Veterinary Medicine 

Técnica guiada por ultrassom 

Esse método envolve um dispositivo de fio-guia que pode ser acoplado ao transdutor de ultrassom de matriz curva. Antes da coleta, esse fio-guia deve ser esterilizado em uma autoclave e (ao realizar múltiplas coletas de uma única cadela) desinfetado com etanol a 70% entre as coletas de cada saco gestacional. O fio-guia é fixado à sonda de acordo com as instruções do fabricante, e a agulha espinal é inserida através de um pequeno orifício em uma posição predefinida no fio-guia (Figura 5). A penetração das membranas fetais, a coleta dos líquidos e o processamento dessas amostras seguem o mesmo procedimento descrito para a técnica à “mão livre”.

Centesis using a guide with ultrasound

Figura 5. Centese com agulha guiada por ultrassom.

Créditos: Smadar Tal/Koret School of Veterinary Medicine

O uso de um fio-guia pode ser uma opção mais segura e fácil para operadores menos experientes, embora a principal desvantagem seja a necessidade de esterilizar o aparelho entre várias coletas de líquidos fetais de diferentes conceptos em uma única cadela durante o procedimento. Com experiência, a técnica à “mão livre” é preferível para operadores experientes.

A quantidade de líquido retirado de cada concepto varia entre 0,5-5,0 mL, dependendo do porte da cadela, do dia da gestação e da posição do feto. Após a amostragem, o volume de líquido removido deve ser substituído por um volume equivalente de solução estéril de cloreto de sódio a 0,9% antes da remoção da agulha espinal. Depois da coleta, a cadela deve ser mantida em um ambiente tranquilo e silencioso por pelo menos 24 horas para evitar possíveis complicações a curto prazo.


Quais são os riscos?

As possíveis complicações da amniocentese na medicina humana incluem infecção do saco amniótico, indução de trabalho de parto prematuro, desconforto respiratório na mãe, deformidades fetais, aloimunização e falha na cicatrização adequada do orifício da punção 24. Apesar de ser muito pouco comum na medicina humana, a lesão fetal pode ocorrer secundariamente ao trauma causado pela agulha. Até o momento, a autora não detectou nenhuma lesão fetal macroscópica após a realização de centese em cadelas, embora seja possível a ocorrência de lesões microscópicas – é possível que alguns locais de punção microscópica no útero, nas membranas fetais ou no próprio feto passem despercebidos, embora se possa supor que, se tivessem ocorrido, não teriam relevância clínica 9.

Considerações finais

Apesar de ainda estar em sua fase inicial, a coleta de líquidos fetais na cadela é uma técnica que pode trazer vários benefícios para médicos-veterinários, criadores e tutores de pequenos animais nos próximos anos. Um clínico qualificado e habilidoso deve ser capaz de coletar líquido alantoide ou amniótico sem muita dificuldade e com risco mínimo para o concepto. A análise dos líquidos fetais deve ajudar na detecção precoce de anormalidades e distúrbios genéticos, defeitos da placenta, infecção microbiana da progenitora ou do feto e determinação do sexo.

References

  1. Gude NM, Roberts CT, Kalionis B, et al. Growth and function of the normal human placenta. Thromb. Res. 2004;114:397-407.

  2. Minazaki CK, Gagioti S, Zago D, et al. Acid phosphatase and cathepsin D are active expressed enzymes in the placenta of the cat. Res. Vet. Sci. 2008;84:326-334.

  3. Carter AM. IFPA Senior Award Lecture: Mammalian fetal membranes. Placenta 2016;48 Suppl 1:S21-S30. 

  4. Chavatte-Palmer P, Tarrade A. Placentation in different mammalian species. Ann. Endocrinol. (Paris) 2016;77:67-74. 

  5. Underwood MA, Gilbert WM, Sherman MP. Amniotic fluid: not just fetal urine anymore. J. Perinatol. 2005;25:341-348. 

  6. Brace RA. Physiology of amniotic fluid volume regulation. Clin. Obstet. Gynecol. 1997;40:280-289. 

  7. Leiser R, Kaufmann P. Placental structure: in a comparative aspect. Exp. Clin. Endocrinol. 1994;102:122-134.

  8. Li N, Wells DN, Peterson AJ, et al. Perturbations in the biochemical composition of fetal fluids are apparent in surviving bovine somatic cell nuclear transfer pregnancies in the first half of gestation. Biol. Reprod. 2005;73:139-148.

  9. Tal S, Kahila Bar-Gal G, Arlt SP. Evaluation of short-term safety of ultrasound-guided foetal fluid sampling in the dog (Canis lupus familiaris) Vet. Rec. 2021;188(7):e31. 

  10. Nizard J. Amniocentesis: technique and education. Curr. Opin. Obstet. Gynecol. 2010; 22:152-154. 

  11. Shulman LP and Elias S. Amniocentesis and chorionic villus sampling. West. J. Med. 1993;159:260-268. 

  12. Tseng JJ, Chou MM, Lo FC, et al. Detection of chromosome aberrations in the second trimester using genetic amniocentesis: experience during 1995-2004. Taiwan J. Obstet. Gynecol. 2006;45:39-41. 

  13. Connolly KA, Eddleman KA. Amniocentesis: A contemporary review. World J. Obstet. Gynecol. 2016;5:58-65.

  14. Cruz-Lemini M, Parra-Saavedra M, Borobio V, et al. How to perform an amniocentesis. Ultrasound Obstet. Gynecol. 2014;44:727-731. 

  15. Musilova I, Bestvina T, Stranik J, et al. Transabdominal amniocentesis is a feasible and safe procedure in preterm prelabor rupture of membranes. Fetal Diagn. Ther. 2017;42:257-261. 

  16. Wood PL, Ball BA, Scoggin K, et al. Lipidomics of equine amniotic fluid: Identification of amphiphilic (O-acyl)-omega-hydroxy-fatty acids. Theriogenology 2018;105:120-125. 

  17. Bonte T, Del Carro A, Paquette J, et al. Foetal pulmonary maturity in dogs: Estimated from bubble tests in amniotic fluid obtained via amniocentesis. Reprod. Domest. Anim. 2017;52:1025-1029. 

  18. Veronesi MC, Bolis B, Faustini M, et al. Biochemical composition of fetal fluids in at term, normal developed, healthy, viable dogs and preliminary data from pathologic littermates. Theriogenology 2018;108:277-283. 

  19. Layssol D PAC-MS. Fetal sex determination by amniocentesis in the canine species: a case report. In; Proceedings, 21st EVSSAR Congress 2018, Venice, Italy;173.

  20. Lutzko C, Omori F, Abrams-Ogg AC, et al. Gene therapy for canine alpha-L-iduronidase deficiency: in utero adoptive transfer of genetically corrected hematopoietic progenitors results in engraftment but not amelioration of disease. Hum. Gene. Ther. 1999;10:1521-1532. 

  21. Hayashita-Kinoh H, Yugeta N, Okada H, et al. Intra-amniotic rAAV-mediated microdystrophin gene transfer improves canine X-linked muscular dystrophy and may induce immune tolerance. Mol. Ther. 2015;23:627-637.

  22. Manca R, Rizzo A, Trisolini C, et al. Intra-vesicle administration of D-cloprostenol for induction of abortion in mid-gestation bitches. Anim. Reprod. Sci. 2008;106:133-142.

  23. van Oostrom H, Knowles TG. The clinical efficacy of EMLA cream for intravenous catheter placement in client-owned dogs. Vet. Anaesth. Analg. 2018;45(5):604-608.

  24. Hayat M, Hill M, Kelly D, et al. A very unusual complication of amniocentesis. Clin. Case Rep. 2015;3:345-348.

Smadar Tal

Smadar Tal

A Dra. Tal se formou com honrarias no Ontario Veterinary College (Faculdade de Medicina Veterinária de Ontário) em 1992 e trabalhou em um consultório particular canadense por vários anos antes de se mudar para Israel, onde ela se estabeleceu e foi proprietária de um consultório particular bem-sucedido de pequenos animais perto de Tel Aviv por 22 anos. Leia mais

Outros artigos nesta edição

Número da edição 32.1 Publicado 26/08/2022

Como prevenir problemas de comportamento em cães filhotes

Muitos tutores escolhem seu filhote pelos motivos errados, mas Jon Bowen identifica alguns fatores-chave que podem ajudar um filhote a se tornar um ótimo membro da família.

por Jon Bowen

Número da edição 32.1 Publicado 26/08/2022

Principais desafios da profissão veterinária

O mundo traz desafios para a profissão veterinária diariamente, e pode ajudar saber que o que vivenciamos como indivíduos é compartilhado por nossos colegas, onde quer que estejam – e entendendo os desafios enfrentados por outras partes interessadas, podemos trabalhar juntos em uma forma que seja mutuamente benéfica.

por Cara McNeill e Ewan McNeill

Número da edição 32.1 Publicado 10/08/2022

Comportamento materno em cadelas

O comportamento materno não só desempenha um papel importante na sobrevivência dos filhotes durante as primeiras semanas de vida, mas também pode ter um efeito duradouro no desenvolvimento cognitivo desses filhotes. O presente artigo oferece algumas dicas e pistas que podem ajudar o clínico ao lidar com filhotes recém-nascidos.

por

Número da edição 32.1 Publicado 09/08/2022

Consultas bem-sucedidas de filhotes felinos

O êxito das visitas de filhotes felinos à clínica veterinária irá preparar o paciente para uma vida inteira de cuidados veterinários, conforme explica Elizabeth O'Brien.

por Elizabeth O’Brien